O MAL DE PORTUGAL CHAMA-SE SOCIALISMO

A doença de que padecemos tem um nome: EXCESSO DE ESTADO, ou numa palavra: SOCIALISMO

terça-feira, abril 29

Mises revisitado: sobre a Política e Ideias

SEXTA LlÇÃO

POLÍTICA E IDÉIAS

No Século das Luzes, nos anos em que os norte-americanos instituíram sua
independência, e alguns anos mais tarde, quando as colônias espanholas e
portuguesas se transformaram em nações independentes, predominava na
civilização ocidental um espírito de otimismo. Nessa época, todos os filósofos
e estadistas estavam plenamente convencidos de que vivíamos o alvorecer de
uma nova era de prosperidade, progresso e liberdade. Alimentava-se naqueles
dias a esperança de que as novas instituições políticas - os governos
representativos constitucionais estabelecidos nas nações livres da Europa e da
América - atuariam de forma muito benéfica, e que a liberdade econômica
promoveria a permanente melhoria das condições materiais dá humanidade.
Sabemos perfeitamente que algumas dessas expectativas eram demasiado
otimistas. Não há dúvida de que experimentamos, nos séculos XIX e XX, um
progresso sem precedentes das condições econômicas, progresso este que
tornou possível a uma população muito maior viver num padrão de vida muito
superior ao de épocas anteriores. Mas sabemos, também, que muitas das
esperanças dos filósofos do século XVIII foram atrozmente estilhaçadas -
esperanças de que não haveria mais guerras e de que as revoluções se tornariam
desnecessárias. Essas esperanças não se concretizaram. (86)
Durante o século XIX, houve um período em que as guerras diminuíram,
tanto em número quanto em gravidade. Mas o século XX trouxe um
ressurgimento do espírito belicoso, e temos boas razões para dizer que talvez
ainda não tenhamos chegado ao fim das provações que a humanidade deverá
atravessar.
O sistema constitucional introduzido em fins do século XVIII e inicio do
XIX frustrou a humanidade. A maioria das pessoas - e dos autores - que tratou
desse problema parece pensar que não houve relação entre os aspectos político
e econômico do problema. Tende-se, por conseguinte, a considerar o fenômeno
da deterioração do parlamentarismo - governo exercido pelos representantes do
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povo - como se fosse um fenômeno desvinculado da situação econômica e das
concepções econômicas que determinam as atividades das pessoas.
Essa independência, no entanto, não existe. O homem não é um ser que
tenha, por um lado, uma dimensão econômica e, por outro, uma dimensão
política, dissociadas uma da outra. Na verdade, aquilo a que comumente se dá o
nome de deterioração da liberdade, do governo constitucional e das instituições
representativas, nada mais é que a conseqüência da mudança radical das idéias
políticas e econômicas. Os eventos políticos são a conseqüência inevitável da
mudança das políticas econômicas.
As idéias que nortearam os estadistas, filósofos e juristas que, no século
XVIII e princípio do século XIX, elaboraram os fundamentos do novo sistema
político, partiam do pressuposto de que, numa nação, todos os cidadãos
honestos têm uma mesma meta final. Essa meta final na qual todos os homens
decentes se deveriam empenhar é o bem-estar de toda a nação, assim como o
das demais nações. Aqueles líderes morais e políticos estavam, portanto,
firmemente convencidos de que uma nação livre não está interessada em
conquista. Julgavam a luta partidária algo simplesmente natural, uma vez que
lhes parecia totalmente normal a existência de diferenças de opinião (87) no
tocante à melhor maneira de se conduzirem os negócios do estado.
As pessoas que tinham idéias semelhantes acerca de um problema
cooperavam, e a essa cooperação dava-se o nome de partido. Por outro lado, a
estrutura partidária não era permanente: não se baseava na posição ocupada
pelos indivíduos no conjunto da estrutura social e podia sofrer alterações, caso
as pessoas se dessem conta de que sua posição original fundamentara-se em
pressupostos errôneos, ou em idéias equivocadas. Desse ponto de vista, muitos
consideravam as discussões desenroladas nas campanhas eleitorais e,
posteriormente, nas assembléias legislativas, um importante fator político. Não
concebiam os discursos dos membros de um congresso como meros
pronunciamentos que anunciavam ao mundo as aspirações de um partido
político. Viam-nos como tentativas de convencer os grupos adversários de que
as idéias apresentadas pelo orador eram mais corretas, mais propícias ao bem
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comum que outras idéias antes apresentadas.
Discursos políticos, editoriais em jornais, folhetos e livros eram escritos no
intuito de persuadir. Não havia por que acreditar ser impossível para alguém
convencer a maioria da absoluta correção das próprias idéias, desde que estas
fossem bem fundamentadas. Foi nessa perspectiva que as normas
constitucionais foram formuladas nos órgãos legislativos do principio do século
XIX.
No entanto, partia-se do pressuposto de que o governo não iria interferir nas
condições econômicas do mercado. Era preciso, também, que todos os cidadãos
tivessem um único objetivo político: o bem-estar de todo o pais e de toda a
nação. E foi precisamente essa a filosofia social e econômica que o
intervencionismo veio a suplantar, gerando uma filosofia totalmente diversa.
Segundo as concepções intervencionistas, é dever do governo apoiar,
subsidiar, conceder privilégios a grupos especiais. O estadista do século XVIII
pensava que os legisladores tinham idéias (88) específicas sobre o bem comum.
Hoje, entretanto, constatamos, na realidade da vida política - praticamente na
de todos os países do mundo onde não vigora simplesmente uma ditadura
comunista - uma situação em que já não existem partidos políticos autênticos,
no velho sentido clássico, mas tão-somente grupos de pressão.
Um grupo de pressão é um grupo de pessoas desejoso de obter um privilégio
à custa do restante da nação. Esse privilégio pode consistir numa tarifa sobre
importações competitivas, pode consistir em leis que impeçam a concorrência
de outros. Seja como for, confere aos membros de um grupo uma posição
especial. Dá-lhes algo que é negado, ou deve ser negado - segundo os desígnios
do grupo de pressão - a outros grupos.
Nos Estados Unidos, o sistema bipar-tidário dos velhos tempos
aparentemente ainda se conserva. Mas isso é apenas uma camuflagem da
situação real. Ma verdade, a vida política desse pais - bem como a de todos os
demais - é determinada pela luta e pelas aspirações de grupos de pressão. Nos
Estados Unidos, continuam a existir um Partido Republicano e um Partido
Democrata, mas cada um deles abriga representantes dos mesmos grupos de
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pressão. Estes representantes estão mais interessados em cooperar com outros
representantes do mesmo grupo, mesmo que sejam filiados ao partido
adversário, que com os esforços dos próprios companheiros de partido.
Assim, por exemplo, se conversarmos nos Estados Unidos com pessoas que
efetivamente conheçam as atividades do Congresso, elas nos dirão: "Tal
político, tal membro do Congresso representa os interesses dos grupos ligados à
prata." Ou dirão que tal outro político representa os plantadores de trigo.
Como é óbvio, cada um desses grupos de pressão constitui, necessariamente,
uma minoria. Num sistema baseado na divisão do trabalho, todo grupo especial
que almeja privilégios não pode deixar de ser uma minoria. E as minorias não
têm qualquer possibilidade de êxito, senão pela colaboração com (69) outras
minorias congêneres, ou seja, com outros grupos de pressão semelhantes. Nas
assembléias legislativas, procura-se compor uma coalizão entre vários grupos
de pressão, de tal modo que possam vir a se converter em maioria. Mas,
passado algum tempo, essa coalizão pode se desintegrar, uma vez que há
questões que tornam impossível o acordo entre vários grupos. Novas coalizões,
então, se formam.
Foi o que ocorreu na França em 1871, numa situação que se configurou, aos
olhos dos historiadores, como "a queda da Terceira República". Não se tratou,
porém, de um declínio da Terceira República; houve simplesmente uma mostra
de que o sistema de grupos de pressão não é algo que se possa aplicar com
sucesso ao governo de uma grande nação.
Temos, nos órgãos legislativos, representantes do trigo, da carne, da prata,
do petróleo, mas, antes de tudo, de diversos sindicatos. Só uma coisa não está
representada no legislativo: a nação como um todo. Apenas vozes isoladas se
põem ao lado do conjunto da nação. E todos os problemas, mesmo os de
política exterior, são encarados do ponto de vista dos interesses especiais dos
grupos de pressão.
Nos Estados Unidos, alguns dos estados de menor população estão
interessados no preço da prata. Mas nem todos os habitantes desses estados têm
esse interesse. Todavia, o pais despendeu, por muitas décadas, considerável
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soma de dinheiro, à custa dos contribuintes, para comprar prata a um preço
superior ao do mercado. Para mencionar mais um exemplo, só uma pequena
parcela da população norte-americana dedica-se à agricultura; o restante é
constituído por consumidores - não produtores - de produtos agrícolas. Não
obstante, esse pais tem uma política que envolve o gasto de bilhões e bilhões de
dólares com a finalidade de manter os preços dos produtos agrícolas acima do
preço potencial de mercado.
Não se pode dizer que esta é uma política de favorecimento de uma pequena
minoria, visto que esses interesses agrícolas não são uniformes. Os que se
dedicam à produção de leite não estão interessados (90) num alto preço para os
cereais; ao contrário, prefeririam que esse produto fosse mais barato. Um
criador de galinhas desejaria um preço mais baixo para a ração que compra. Há
muitos interesses específicos incompatíveis no interior desse grupo, por
pequeno que seja. E apesar de tudo, uma hábil diplomacia cria condições que
permitem a pequenos grupos obterem privilégios a expensas da maioria.
Uma situação especialmente interessante nos Estados Unidos relaciona-se ao
açúcar. Talvez apenas um dentre quinhentos norte-americanos esteja
interessado num preço mais alto para o açúcar. Provavelmente os outros 499
querem um preço mais baixo. Contudo, a política do país empenha-se,
mediante tarifas e outras medidas especiais, numa elevação do preço do açúcar.
Essa política não prejudica somente os interesses dos 499 que são
consumidores de açúcar: gera também um gravíssimo problema de política
exterior. O objetivo da política exterior norte-americana é a cooperação com
todas as demais repúblicas. Ora, algumas delas têm interesse em vender açúcar
aos Estados Unidos e desejariam vendê-lo em maiores quantidades. Este
exemplo ilustra como os interesses dos grupos de pressão são capazes de
determinar até mesmo a política exterior de uma nação.
Ao longo de anos, em todas as partes do mundo, se tem escrito sobre
democracia - sobre o governo popular representativo. Esses textos trazem
queixas das deficiências do regime, mas a democracia que criticam é apenas
aquela em que o intervencionismo é a política que rege o pais.
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Hoje, poderíamos ouvir as seguintes palavras: "No principio do século XIX,
nos parlamentos da França, Inglaterra, Estados Unidos e outras nações, faziamse
pronunciamentos sobre os grandes problemas da humanidade. Lutava-se
contra a tirania, pela liberdade, pela cooperação com todas as outras nações
livres. Mas hoje somos mais práticos no parlamento!"
Não há dúvida de que somos mais práticos; hoje não se fala sobre liberdade;
fala-se sobre a (91) majoração do preço do amendoim, Se isso é ser prático,
então é óbvio que os parlamentos mudaram consideravelmente, mas não para
melhor.
Essas mudanças políticas, fruto do intervencionismo, reduziram
consideravelmente o poder que têm as nações e os representantes para resistir
às aspirações de ditadores e às ações de tiranos. Há representantes em órgãos
legislativos exclusivamente interessados em satisfazer eleitores que desejam,
por exemplo, um preço alto para o açúcar, para o leite e para a manteiga, e um
preço baixo para o trigo (subsidiado pelo governo). Estes parlamentares nunca
poderão representar verdadeiramente o povo: jamais lhes será possível
representar a totalidade de seu eleitorado.
Os eleitores favoráveis a esses privilégios não levam em conta que há
também outros eleitores, com posições totalmente divergentes, que, tendo
pretensões diametralmente opostas, não permitem que seus representantes
tenham um êxito absoluto.
Acresce que este sistema, além de, por um lado, trazer um constante
aumento dos gastos públicos, dificulta, por outro, o estabelecimento de
impostos. Esses representantes dos grupos de pressão almejam muitos
privilégios especiais para seus respectivos grupos, mas não desejam onerar suas
bases de sustentação política com uma carga tributária demasiado pesada.
Não era idéia dos fundadores do moderno governo constitucional, no século
XVIII, que um legislador devesse representar não o conjunto da nação, mas
apenas os interesses específicos do distrito em que fora eleito. Essa foi, aliás,
uma das conseqüências do intervencionismo. Segundo a concepção original,
cada membro do parlamento deveria representar toda a nação. Era eleito em
88
determinado distrito somente porque ali era bem conhecido, sendo escolhido
por pessoas que nele confiavam.
Mas não se pretendia que esse representante ingressasse no governo com o
objetivo de proporcionar algo especial para seu eleitorado, para (92) reivindicar
uma nova escola, um novo hospital ou um novo manicômio - causando assim
considerável elevação dos gastos governamentais no seu distrito. Os grupos
políticos de pressão permitem entender por que é quase impossível, a quase
todos os governos, deter a inflação. Quando as autoridades eleitas procuram
restringir despesas, limitar gastos, os que defendem interesses especiais - uma
vez que serão beneficiários diretos de determinados itens do orçamento -
apresentam-se para declarar que tal projeto especifico não pode ser posto em
prática, ou que tal outro deve ser implementado.
A ditadura, claro, não é solução para os problemas econômicos, como não é
resposta para os problemas da liberdade. Um ditador pode começar fazendo
toda a sorte de promessas, mas, ditador que é, não as cumprirá. Em vez disso,
suprimirá imediatamente a liberdade de expressão, de tal modo que os jornais e
os oradores no parlamento já não possam assinalar - nos dias, meses ou anos
subseqüentes - que no primeiro dia de sua ditadura, ele dissera algo diverso do
que passou a praticar dali por diante.
A terrível ditadura que um pais tão importante como a Alemanha foi
obrigada a sofrer no passado recente vem-nos à mente quando consideramos o
declínio da liberdade em tantos países, nos nossos dias. A triste conseqüência é
a deterioração da liberdade e a decadência da nossa civilização, de que tanto se
fala hoje em dia.
Diz-se que toda civilização acabará, finalmente, por entrar em processo de
deterioração e de desintegração. Tal idéia tem eminentes defensores. Um deles
foi um professor alemão, Spengler, e outro, muito mais conhecido, foi o
historiador inglês Toynbee. Eles nos asseveram que nossa civilização já está
velha. Spengler comparou a civilização a plantas que crescem, crescem, mas
cujas vidas finalmente se encerram. O mesmo, diz ele, se aplica às civilizações.
A aproximação metafórica entre uma civilização e uma planta é completamente
89
arbitrária. (93)
Antes de mais nada, é muito difícil distinguir no próprio âmbito da história
da humanidade, civilizações diferentes, independentes. As civilizações não são
independentes; são interdependentes, exercendo umas sobre as outras constante
influência. Não se pode, portanto, falar de declinio de uma civilização do
mesmo modo como se fala da morte de determinada planta.
Mas, mesmo refutando-se as doutrinas de Spengler e Toynbee, resta ainda
uma comparação muito usual: a comparação entre civilizações em deterioração.
Não há dúvida de que, no século II d.C, o Império Romano gerou uma
florescente civilização, a qual se constituiu na mais elevada das que se
desenvolveram nas regiões da Europa, Ásia e África. Houve
concomitantemente elevadíssima civilização econômica, baseada num certo
grau de divisão do trabalho. Embora esta civilização econômica possa parecer
extremamente primitiva quando comparada às condições atuais, ela teve
características certamente notáveis. Alcançou o mais alto grau de divisão do
trabalho jamais atingido até o advento do capitalismo moderno. Não é menos
verdade que essa civilização se deteriorou, sobretudo no século III. E foi esta
desintegração no seio de seu império que tornou impossível aos romanos
resistirem à agressão externa. Embora esta agressão não fosse pior que outras
muitas vezes repelidas nos séculos precedentes, os romanos já não tiveram
condições de lhe opor resistência, desgastados que estavam pelo que se passara
no interior do seu império.
Que acontecera? Qual teria sido o problema? Qual poderia ter sido a causa
de desintegração de um império que, sob todos os aspectos, construíra uma
civilização sem outra que se lhe igualasse até o século XVIII? A verdade é que
essa civilização foi destruída por algo semelhante, quase idêntico, aos perigos
que rondam hoje a nossa civilização: por um lado houve intervencionismo; por
outro, inflação. O intervencionismo no Império Romano consistia no fato de
que, seguindo o modelo político dos seus predecessores (94) gregos, os
romanos impunham o controle dos preços. Era um controle brando,
praticamente sem conseqüências, porque, durante séculos, não se procurou
90
reduzir os preços a um nivel abaixo de seu nivel de mercado.
Quando a inflação teve início, no século III, os romanos ainda não
dispunham dos nossos recursos técnicos para promovê-la - não tinham como
imprimir dinheiro. Lançavam mão do método que consistia em enfraquecer o
teor da liga metálica com que se cunhavam as moedas, sem dúvida um sistema
de Inflacionar muito menos eficaz que o atual, que pode, através de modernas
máquinas impressoras, destruir com tanta facilidade o valor do dinheiro. Mas
seu antigo método era eficiente o bastante para surtir o mesmo efeito, ou seja,
para exercer o controle de preços. Deste modo, os preços que as autoridades
toleravam passaram a estar abaixo do preço potencial a que a inflação elevara
as várias mercadorias.
O resultado, obviamente, foi que a oferta de produtos alimentícios nas
cidades reduziu-se. As populações urbanas foram obrigadas a retornar ao
campo e às atividades agrícolas. Os romanos nunca se deram conta do que
estava ocorrendo. Não compreenderam. Não tinham desenvolvido instrumentos
mentais que lhes permitissem interpretar os problemas da divisão do trabalho e
as conseqüências da inflação no mercado de preços. Tinham, no entanto,
clareza suficiente para reconhecer o quanto era nefasta aquela inflação e
deterioração da moeda corrente.
Os imperadores, então, baixaram leis que proibiam o deslocamento dos
habitantes da cidade para o campo, mas tais leis não tiveram efeito. Aliás, não
havia lei capaz de impedir que as pessoas que passavam fome, pois nada
tinham para comer, abandonassem a cidade e retornassem à agricultura. O
habitante da cidade já não podia trabalhar nas indústrias urbanas de
processamento como artesão. Os prejuízos dos mercados nas cidades eram tais
que já se tornara impossível comprar qualquer mercadoria. (95)
Assim, do século III em diante, as cidades do Império Romano entraram em
decadência, e a divisão do trabalho tornou-se muito mais precária que a de
antes. Finalmente, o sistema medieval da casa de família auto-suficiente, a
"villa", como foi chamada em leis posteriores, emergiu.
Portanto, se compararmos nossas condições com as do Império Romano,
91
teremos razões para dizer: "Iremos pelo mesmo caminho." Há muitos fatos
semelhantes. Nas há também enormes diferenças, que não estão relacionadas
com a estrutura; política dominante na segunda metade do século III. nesse
período, havia o assassinato de um imperador a cada três anos em média. O
assassino ou o responsável pela morte tornava-se seu sucessor. Cerca de três
anos depois, a história se repetia. Diocleciano, quando tornou-se imperador, no
ano 284, tentou por algum tempo, sem sucesso, resistir à deterioração do
Império.
As diferenças entre as condições atuais e as de Roma do século III são
enormes, porque as medidas que causaram a desintegração do Império Romano
não foram premeditadas. Não eram, eu diria, medidas assumidas em
conseqüência de doutrinas condenáveis mas bem formalizadas.
As idéias intervencionistas, as idéias socialistas, as idéias inflacionistas de
nossos dias foram engendradas e formalizadas por escritores e professores. E
são ensinadas nas universidades. Poder-se-ia então observar: "A situação atual
é muito pior.'' Eu respondo: "Não, não é pior." É melhor, na minha opinião,
porque idéias podem ser derrotadas por outras idéias. Ninguém duvidava, na
época dos imperadores romanos, de que a determinação de preços máximos era
uma boa política, e de que assistia ao governo o direito de adotá-la. Ninguém
discutia isso.
Mas agora, quando temos escolas, professores e livros prescrevendo tais e
tais caminhos, sabemos muito bem que se trata de um problema a discutir.
Todas essas idéias nefastas que hoje nos afligem, (96) que tornaram nossas
políticas tão nocivas, foram elaboradas por técnicos do meio acadêmico.
Um famoso autor espanhol falou a respeito da "revolta das massas".
Devemos ser muito cuidadosos no uso desse termo, porque essa revolta não foi
feita pelas massas: foi feita pelos intelectuais, que, não sendo homens do povo,
elaboraram doutrinas. Segundo a doutrina marxista, só os proletários têm boas
idéias, e a mente proletária, sozinha, engendrou o socialismo. Todos esses
autores socialistas, sem exceção, eram "burgueses", no sentido em que eles
próprios, socialistas, usam o termo.
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Karl Marx não teve origem proletária. Era filho de um advogado. Não
precisou trabalhar para chegar à universidade. Fez seus estudos superiores do
mesmo modo como o fazem hoje os filhos das famílias abastadas. Mais tarde, e
pelo resto de sua vida, foi sustentado pelo amigo Friedrich Engels, que - sendo
um industrial -, era do pior tipo "burguês", segundo as idéias socialistas. Na
linguagem do marxismo, era um explorador.
Tudo o que ocorre na sociedade de nossos dias é fruto de idéias, sejam elas
boas, sejam elas más. Faz-se necessário combater as más idéias. Devemos lutar
contra tudo o que não é bom na vida pública. Devemos substituir as idéias
errôneas por outras melhores, devemos refutar as doutrinas que promovem a
violência sindical. É nosso dever lutar contra o confisco da propriedade, o
controle de preços, a inflação e contra tantos outros males que nos assolam.
Idéias, e somente idéias, podem iluminar a escuridão. As boas idéias devem
ser levadas às pessoas de tal modo que elas se convençam de que essas idéias
são as corretas, e saibam quais são as errôneas. No glorioso período do século
XIX, as notáveis realizações do capitalismo foram fruto das idéias dos
economistas clássicos, de Adam Smith e David Ricardo, de Bastiat e outros.
Precisamos, apenas, substituir más idéias por idéias melhores. A geração
vindoura conseguirá fazer isso. Não apenas espero que assim seja: (97) tenho
mesmo muita confiança neste futuro. Nossa civilização, não está condenada,
malgrado o que dizem Spengler e Toynbee. Nossa civilização sobreviverá, e
deve sobreviver. E sobreviverá respaldada em idéias melhores que aquelas que
hoje governam a maior parte do mundo, idéias que serão engendradas pela
nova geração.
Já considero um ótimo sinal o simples fato de eu hoje estar aqui, nesta
grande cidade que é Buenos Aires, a convite deste Centro, falando sobre a livre
economia. Há cinqüenta anos atrás, ninguém no mundo ousava dizer uma
palavra sequer em favor de uma economia livre. Hoje, em alguns dos países
mais avançados do mundo, já temos instituições que são centros para a
propagação destas idéias.
Infelizmente, não me foi possível dizer muito sobre essas questões tão
93
importantes. Seis palestras podem ser excessivas pára um auditório, mas não
são bastantes quando se quer expor toda a filosofia que embasa o sistema de
livre economia. Por outro lado, certamente não são bastantes para que se possa
refutar tudo o que de insensato vem sendo escrito, nos últimos cinqüenta anos,
acerca dos problemas econômicos de que estamos tratando.
Estou muito agradecido a este Centro pela oportunidade de me dirigir a tão
distinta platéia e espero que, dentro de alguns anos, o número dos defensores
das idéias em prol da liberdade tenha crescido consideravelmente, neste e em
outros países. Quanto a mim, tenho plena confiança no futuro da liberdade,
tanto política quanto econômica. (98)
94

Mises revisitado: sobre o Investimento Externo

QUINTA LIÇÃO

INVESTIMENTO EXTERNO

Há quem atribua aos programas de liberdade econômica um caráter
negativo. Dizem: "Que querem de fato os liberais? São contra o socialismo, a
intervenção governamental, a inflação, a violência sindical, as tarifas
protecionistas... Dizem 'não' a tudo."
Esta me parece uma apresentação unilateral e superficial do problema. É,
sem dúvida, possível formular um programa liberal de forma positiva. Quando
alguém afirma: "Sou contra a censura", não se torna negativo por isso: na
verdade, esta pessoa é a favor de os escritores terem o direito de determinar o
que desejam publicar, sem a interferência do governo. Isso não é negativismo,
é precisamente liberdade. (É óbvio que, ao empregar o termo "liberal" com
relação às condições do sistema econômico,, tenho em mente o velho sentido
clássico da palavra).
Hoje, grande parte das pessoas julga inadequadas as consideráveis
diferenças de padrão de vida existentes entre muitos paises. Dois séculos atrás,
as condições da Grã-Bretanha eram muito piores que as condições atuais da
Índia. Mas em 1750 ps britânicos não se atribuíam os rótulos de
"subdesenvolvidos" ou de "atrasados", pois não tinham como comparar a
situação de seu país com a de outros, que se encontrassem em condições
econômicas mais satisfatórias. Hoje, todos os povos que não atingiram o
padrão (70) de vida médio dos Estados Unidos acreditam haver algo errado na
sua situação econômica. Muitos deles se intitulam "países em
desenvolvimento" e, nessa qualidade, reivindicam ajuda dos chamados países
desenvolvidos ou superdesenvolvidos.
Permitam-me explicar a realidade dessa situação. O padrão de vida é mais
baixo nos chamados países em desenvolvimento porque os ganhos médios para
os mesmos gêneros de trabalhos são mais baixos nesses países que em alguns
outros da Europa Ocidental, que no Canadá, no Japão, e especialmente nos
Estados Unidos. Se investigarmos as razões dessa diferença, seremos obrigados
68
a reconhecer que ela não decorre de uma inferioridade dos trabalhadores ou de
outros empregados. Reina entre certos grupos de trabalhadores norteamericanos
a tendência a se julgarem melhores que os outros povos - e que é
graças aos próprios méritos que ganham salários mais altos que os
trabalhadores dos demais países.
Bastaria a um trabalhador norte-americano visitar um outro pais - digamos a
Itália, de onde tantos deles são originários - para constatar que não são suas
qualidades pessoais, mas as condições do pais, que lhe possibilitam receber
salários menos ou mais elevados. Se um siciliano migrar para os Estados
Unidos, em pouco tempo poderá alcançar os padrões salariais correntes neste
país. E, se retornar à Sicília, o mesmo homem verificará que sua permanência
nos Estados Unidos não lhe conferiu qualidades que lhe permitissem auferir, na
Sicilia, salários superiores aos de seus conterrâneos.
Essa situação econômica tampouco pode ser explicada a partir do
pressuposto de que os empresários americanos sejam superiores aos
empresários dos demais países. É fato que - exceção feita ao Canadá, à Europa
Ocidental e a certas regiões da Ásia - o equipamento das fábricas e os
processos tecnológicos são, de modo geral, inferiores aos utilizados nos
Estados Unidos. Mas isso não é fruto da ignorância dos empresários desses
países "subdesenvolvidos". Eles têm perfeita consciência de que as fábricas dos
(71) Estados Unidos e do Canadá são muito mais bem equipadas. Muitos
recebem informações apropriadas sobre tudo isso, uma vez que são obrigados a
se manterem em dia com a tecnologia. As vezes, ao faltarem as informações,
esses empresários buscam outros meios disponíveis para suprir suas
deficiências: recorrem, então, a manuais e revistas técnicas que divulgam esse
conhecimento.
A diferença, repetimos, não reside na inferioridade pessoal nem na
ignorância. A diferença está na disponibilidade de capital, na quantidade
acessível de bens de capital. Em outras palavras, o montante de capital
investido per capita é maior nas chamadas nações avançadas que nas nações
em desenvolvimento.
69
Um empresário não pode pagar a um trabalhador mais que a soma
adicionada pelo trabalho desse empregado ao valor do produto. Não lhe pode
pagar mais que aquilo que os clientes se dispõem a pagar pelo trabalho
adicional desse trabalhador individual. Se lhe pagar mais, a paga de seus
clientes não lhe permitirá recuperar seus gastos. Sofrerá prejuízos, e além disso,
como já ressaltei várias vezes, e é do conhecimento geral, um negociante
submetido a prejuízos é obrigado a mudar seus métodos de negociar. Caso
contrário, vai à bancarrota.
Os economistas dizem que "os salários são determinados pela produtividade
marginal da mão-de-obra". Esta afirmativa não é mais que outra formulação do
que acabamos de expor. Não se pode negar o fato de que a escala salarial é
determinada pelo montante em que o trabalho de um indivíduo aumenta o valor
do produto. Dispondo de instrumentos de alta qualidade e eficiência, uma
pessoa poderá realizar, em uma hora de trabalho, muito mais que outra que,
também durante uma hora, trabalhe com instrumentos menos aperfeiçoados e
menos eficientes. É óbvio que cem homens que trabalhem numa fábrica de
calçados nos Estados Unidos produzam muito mais, no mesmo prazo, que cem
sapateiros na Índia, obrigados (72) a utilizar ferramentas antiquadas, num
processo menos sofisticado.
Os empregadores de todas essas nações em desenvolvimento estão
perfeitamente cõnscios de que melhores instrumentos tornariam suas empresas
mais lucrativas. Certamente gostariam de poder não só aumentar o número de
suas fábricas como também adquirir instrumentos mais modernos e
sofisticados. O único empecilho é a escassez de capital. A diferença entre as
nações mais desenvolvidas e as menos desenvolvidas se estabelece em função
do tempo. Os ingleses começaram a poupar antes de todas as outras nações.
Conseqüentemente, também começaram antes a acumular capital e a investi-lo
em negócios. Este foi o fator primordial para que se alcançasse, na Grã-
Bretanha, um padrão de vida bastante elevado numa época em que, em todos os
outros paises europeus, prevalecia ainda um padrão consideravelmente baixo.
Gradualmente, todas as demais nações começaram a analisar o que ocorria na
70
Grã-Bretanha e não lhes foi difícil descobrir a razão da riqueza desse pais.
Assim, puseram-se a imitar os métodos dos negociantes ingleses.
De qualquer modo, o fato de outras nações só terem começado mais tarde
seus investimentos e de os britânicos não terem parado de investir capital fez
permanecer uma grande diferença entre as condições econômicas da Inglaterra
e as desses outros países. Mas ocorreu algo que veio anular a superioridade da
Grã-Bretanha.
Aconteceu, então, o fato mais importante da história do século XIX - e não
me refiro apenas à história de um só pais. Trata-se da expansão, no século XIX,
do Investimento externo. Em 1817, o grande economista inglês Ricardo ainda
considerava ponto pacífico que só se poderia investir capital nos limites de um
país. Não considerava a hipótese de os capitalistas virem a investir no
estrangeiro. Mas, algumas décadas mais tarde, o investimento de capital no
estrangeiro começou a desempenhar um papel de importância primordial no
mundo dos negócios. (73)
Sem esse investimento de capital, as nações menos desenvolvidas que a Grã-
Bretanha teriam sido obrigadas a iniciar seu desenvolvimento utilizando-se dos
mesmos métodos e tecnologia usados pelo britânicos em princípio e meados do
século XVIII. Seria preciso procurar imitá-los lentamente, passo a passo. E
sempre se estaria muito aquém do nível tecnológico da economia britânica, de
tudo o que os britânicos já tinham realizado.
Teriam sido necessárias muitas e muitas décadas para que esses países
atingissem o padrão de desenvolvimento tecnológico alcançado, mais de um
século antes, pela Grã-Bretanha. Assim, o investimento externo constituiu-se
num fator preponderante de auxílio para que esses países iniciassem seu
desenvolvimento.
O investimento externo significava que capitalistas investiam capital
britânico em outras partes do mundo. Primeiro, investiram-no naqueles países
europeus que, do ponto de vista da Grã-Bretanha, se apresentavam como os
mais carentes de capital e os mais atrasados em seu desenvolvimento. É do
conhecimento de todos que as estradas de ferro da maioria dos países da
71
Europa - e também as dos Estados Unidos - foram construídas com a ajuda do
capital britânico. Aliás, o mesmo se passou aqui na Argentina.
As companhias de gás, em todas as cidades da Europa, eram também
britânicas. Em meados da década de 1870, um escritor e poeta inglês criticou
seus compatriotas dizendo: "Os britânicos perderam o antigo vigor e já não têm
uma só idéia nova. Deixaram de ser uma nação importante ou de vanguarda." A
isto, Herbert Spencer, o eminente sociólogo, respondeu: "Olhe para a Europa
continental. Todas as capitais européias têm iluminação porque uma companhia
britânica lhes fornece gás." Isso se passou, é claro, numa época que hoje se nos
afígura como a época "remota" da iluminação a gás. Spencer disse ainda mais a
esse critico: "Você afirma que os alemães estão muito à frente da Grã-
Bretanha. Olhe para a Alemanha: até
mesmo Berlim, a capital do Reich alemão, a capital do Qeist, ficaria às
escuras se uma companhia britânica de gás não tivesse entrado no pais e
iluminado as ruas."
Foi também o capital britânico que, nos Estados Unidos, implantou as
estradas de ferro e deu início a diversos ramos industriais. É evidente que, ao
importar capital, o pais passa a ter uma balança comercial que os economistas
qualificam de "desfavorável". Isso significa que suas importações excedem as
exportações. A "balança comercial favorável" da Grã-Bretanha devia-se ao fato
de que suas fábricas enviavam muitos tipos de equipamento para os Estados
Unidos e tinham como pagamento simplesmente ações de companhias norteamericanas.
Esse período da história dos Estados Unidos durou,
aproximadamente, até a década de 1890.
Mas quando este pais, com a ajuda do capital britânico - e mais tarde com a
ajuda das próprias políticas pró-capitalistas -, expandiu seu sistema econômico
de uma maneira inédita, os norte-americanos começaram a comprar de volta o
capital acionário que haviam vendido a estrangeiros. Os Estados Unidos
passaram a ter, então, um excesso de exportações em relação às importações. A
diferença a seu favor era paga pela importação - a repatriação, como a
chamavam - das ações ordinárias norte-americanas.
72
Essa fase durou até a Primeira Guerra Mundial. O que aconteceu depois é
uma outra história. Ê a história dos auxílios norte-americanos aos países
beligerantes durante a Primeira e a Segunda Querras Mundiais, bem como nas
entreguerras e após elas: os empréstimos, os Investimentos feitos na Europa,
além do lend-lease*, da ajuda externa, do Plano Marshall, (75) dos alimentos
enviados para outros países e de todos os demais subsídios. Friso isto porque
não são poucos os que acreditam ser vergonhoso ou degradante ter capital
estrangeiro operando em seu pais. Devemos nos dar conta de que em todos os
países, exceto a Inglaterra, o investimento de capital de origem estrangeira
sempre desempenhou um papel da mais considerável importância para a
implantação de indústrias modernas.
Se afirmo que o investimento externo foi o maior acontecimento histórico do
século XIX, faço-o no desejo de lembrar tudo aquilo que nem sequer existiria
se não tivesse havido qualquer investimento externo. Todas as estradas de
ferro, inúmeros portos, fábricas e minas da Ásia, o canal de Suez e muitas
outras coisas no hemisfério ocidental não teriam sido construídos, não fosse o
investimento externo.
O investimento externo é feito na expectativa de que não será expropriado.
Ninguém investiria coisa alguma se soubesse de antemão que seus
investimentos seriam objeto de expropriação. No século XIX e no início do
século XX, não se cogitava disso ao se aplicar no estrangeiro. Desde o
princípio havia, por parte de alguns países, certa hostilidade em relação ao
capital estrangeiro. No entanto, apesar da hostilidade, estes países, em sua
maior parte, compreendiam muito bem que os investimentos externos lhes
propiciavam imensas vantagens.
Em alguns casos, os investimentos externos não eram destinados
* Referência à ajuda prestada nos termos do Lend-Lease Act (Lei de Empréstimo e Arrendamento)
de 1941, pelo qual os Estados Unidos forneciam equipamentos, armas, aviões, alimento, etc. ao Reino
Unido e seus aliados, originalmente como empréstimo em retribuição ao uso de bases militares
britânicas. (Consultados o Websters Dictionary, o Concise Oxford Dlctionary e o Dicionário Inglês-
Português de A. Houaiss). (N. da T.)
73
diretamente a capitalistas de outros países: realizavam-se indiretamente, através
de empréstimos concedidos ao governo do pais estrangeiro. Neste caso, era o
governo que aplicava o dinheiro em investimentos. Foi este, por exemplo, o
caso da Rússia. Por razões puramente políticas, os franceses investiram nesse
pais - nas duas décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial - cerca de
vinte bilhões de francos de ouro, sobretudo na forma de empréstimos ao
governo. Todos os grandes empreendimentos desse governo - como, por
exemplo, a ferrovia que liga a Rússia, indo dos montes do Ural, (76) através do
gelo e da neve da Sibéria, até o Pacífico - foram realizados basicamente com
capital estrangeiro emprestado ao governo russo. Como é fácil presumir, os
franceses nem sequer imaginavam que, de um momento para outro, se
implantaria um governo russo comunista que simplesmente declararia não
pretender pagar os débitos contraídos por seus predecessores do governo
czarista.
A partir da Primeira Guerra Mundial, teve inicio um período de guerra
declarada aos investimentos estrangeiros. Uma vez que não há qualquer medida
capaz de impedir um governo de expropriar capital investido, praticamente
inexiste proteção legal para os investimentos externos no mundo de hoje. Os
capitalistas dos países exportadores de capital não previram isso: se o tivessem
feito, teriam sustado todos os investimentos externos há quarenta ou cinqüenta
anos atrás. Na verdade, os capitalistas não acreditavam que algum pais pudesse
ser antiético o bastante para descumprir uma dívida, para expropriar e confiscar
capital estrangeiro. Com este tipo de ação, inaugurou-se um novo capítulo na
história econômica do mundo.
Encerrado o glorioso período do século XIX, em que o capital estrangeiro
fomentou, em todas as partes do mundo, a implantação de modernos métodos
de transporte, de fabricação, de mineração e de tecnologia agrícola, inaugurouse
uma nova era em que governos e partidos políticos passaram a ter o
investidor estrangeiro na conta de um explorador a ser escorraçado do pais.
Os russos não foram os únicos a incorrer nessa atitude anticapítalista. Basta
lembrar, por exemplo, a expropriação dos campos de petróleo norte-americanos
74
no México, bem como tudo o que se passou aqui, neste pais (Argentina).
A situação no mundo de hoje, gerada pelo sistema de expropriação do
capital estrangeiro, consiste ou na expropriação direta ou naquela realizada
indiretamente, por meio do controle do câmbio exterior (77) ou da
discriminação de taxas. Este é sobretudo um problema de nações em
desenvolvimento.
Tomemos, por exemplo, a maior dessas nações: a India. Sob o sistema
britânico, investiu-se, neste pais, predominantemente capital britânico, embora
também tenha havido investimentos de capital originário de outros países da
Europa. Além disso, os britânicos exportaram para a Índia algo extremamente
importante, que precisa ser mencionado neste contexto: exportaram métodos
modernos de combate a doenças contagiosas. O resultado foi um extraordinário
aumento da população do país que, por sua vez, gerou um terrível agravamento
dos seus problemas. Ante essa situação cada vez mais grave, a Índia optou pela
expropriaçáo como meio de enfrentar suas dificuldades. Mas esta expropriaçáo
não foi sempre efetuada de maneira direta: a hostilização do governo aos
capitalistas estrangeiros se mostrava nos empecilhos criados para seus
investimentos. Como conseqüência, só restava aos capitalistas liquidarem seus
negócios.
A Índia podia, é óbvio, obter capital por um outro método: o da acumulação
interna. Mas trata-se de um país tão hostil à acumulação interna de capital
quanto aos capitalistas estrangeiros. O governo indiano declara pretender
industrializar o país, mas o que de fato tem em mente é instituir empresas
socialistas.
Alguns anos atrás, o famoso estadista Ja-waharlal Nehru publicou uma
coletânea de discursos. O livro foi lançado no intuito de tornar os investimentos
estrangeiros na Índia mais atraentes. O governo indiano não é contrário ao
capital estrangeiro antes que este seja investido. A hostilidade só começa
quando já está investido. Nesse livro - cito literalmente - o Sr. Nehru diz:
"Desejamos, é claro, socializar. Mas não somos contrários a iniciativa privada.
Desejamos encorajar de todas as maneiras a iniciativa privada. Queremos
75
afiançar aos empresários que investem no pais que não os expropriaremos ou
os socializaremos num (78) prazo de dez anos, talvez até por mais tempo." E
ele supunha estar fazendo um convite estimulante.
No entanto, o problema real - como sabem todos aqui presentes - está na
acumulação interna de capital. Em todos os países, são extremamente altos os
impostos que, hoje, pesam sobre as companhias. Na verdade, elas sofrem uma
dupla tributação. Além de haver uma severa taxação sobre seus lucros, há,
ainda, outra taxação sobre os dividendos que pagam aos acionistas. E esta
tributação é feita de maneira progressiva.
A tributação progressiva da renda e dos lucros tem como resultado o fato de
que precisamente aquelas parcelas da renda que se tenderia a poupar e a
investir são consumidas no pagamento de tributos. Tomemos o exemplo dos
Estados Unidos. Há alguns anos, havia um imposto sobre "excesso de lucros":
de cada dólar ganho, a companhia retinha apenas dezoito centavos de dólar.
Quando esses 18 centavos eram pagos aos acionistas, aqueles que possuíam um
grande número de ações tinham de pagar, sobre essa cota, como imposto, um
percentual de 16, 18 ou até mais. Assim, de um dólar de lucro, os acionistas
retinham cerca de sete centavos de dólar, ficando o governo com os 93
restantes. A maior parte desses 93% que, nas mãos do acionista, teria sido
economizada e investida, é utilizada pelo governo nas despesas comuns. É esta
a política dos Estados Unidos.
Espero ter deixado claro que a política dos Estados Unidos não é um
exemplo a ser imitado por outros países. Quero apenas ressalvar que um pais
rico tem mais condições de suportar más políticas que um pais pobre. Nos
Estados Unidos, a despeito desses métodos de tributação, ainda se verifica,
todos os anos, alguma acumulação adicional de capital que reverte em
investimentos. Permanece ainda, conseqüentemente, uma tendência à elevação
do padrão de vida.
Mas em muitos outros países o problema é extremamente mais critico. Além
de não haver - ou de não haver em volume suficiente - poupança interna, (79) o
investimento de capital oriundo do estrangeiro é severamente reduzido em
76
decorrência da franca hostilidade existente em relação ao investimento externo.
Como podem estes países falar de industrialização, da necessidade de criar
novas fábricas, de atingir melhores condições econômicas, de elevação do
padrão de vida, de obtenção de padrões salariais mais elevados, de implantar
melhores meios de transporte, se adotam uma prática que terá exatamente o
efeito oposto? O que suas políticas fazem efetivamente, quando criam
obstáculos ao ingresso do capital estrangeiro, é impedir ou retardar a
acumulação interna de capital.
O resultado final é, certamente, extremamente negativo. Como não podia
deixar de ser, decorre de tudo isto uma acentuada perda de confiança: existe
hoje, no mundo todo, um crescente descrédito na viabilidade de se investir no
exterior. Ainda que os países interessados em conseguir novos capitais se
empenhassem em mudar imediatamente suas políticas e fizessem toda a sorte
de promessas, é muito duvidoso que pudessem, mais uma vez, estimular os
capitalistas estrangeiros a neles investirem.
É evidente que existem métodos para evitar que as coisas cheguem a este
ponto. Uma medida possível seria o estabelecimento de alguns estatutos
internacionais - e não somente de acordos - que retirassem os investimentos
externos da jurisdição nacional. Isto poderia ser feito por intermédio das
Nações Unidas. Mas a ONU não passa de um lugar de encontro para discussões
inócuas. Tendo em vista a enorme importância do investimento externo,
percebendo com clareza que só ele pode trazer melhorias para as condições
políticas e econômicas do mundo, precisamos tentar fazer algo em termos de
legislação internacional.
Esta é uma questão legal, de cunho técnico, que estou levantando apenas
para mostrar que a situação não é desesperadora. Se o mundo quiser efetivamente
tornar possível que os países em desenvolvimento elevem seu padrão
de vida, chegando ao (80) "estilo de vida americano", isso poderá ser feito. É
necessário apenas compreender como.
Uma única coisa falta para tornar os paises em desenvolvimento tão
prósperos quanto os Estados Unidos: capital. No entanto, é imprescindível que
77
haja liberdade para empregá-lo sob a disciplina do mercado, não sob a do
governo. É preciso que estas nações acumulem capital interno e viabilizem o
ingresso do capital estrangeiro.
No entanto, faz-se necessário frisar, mais uma vez, que o desenvolvimento
da poupança interna só tem lugar quando as camadas populares se sentem
respaldadas por um sistema econômico que propicie a existência de uma
unidade monetária estável. Em outras palavras, não se pode admitir nenhuma
modalidade de inflação.
Grande parte do capital empregado nas empresas norte-americanas é de
propriedade dos próprios trabalhadores e de outras pessoas de recursos
modestos. Bilhões e bilhões de depósitos de poupança, titulos e apólices de
seguro operam nessas empresas. Hoje, no mercado monetário dos Estados
Unidos, os maiores emprestadores de dinheiro já não são os bancos, mas as
companhias seguradoras. E, do ponto de vista econômico - e não do legal -, o
dinheiro das seguradoras é propriedade do segurado. E praticamente todos os
cidadãos norte-americanos são, de uma forma ou de outra, segurados.
O requisito fundamental para que haja, no mundo, uma maior igualdade
econômica é a industrialização. E esta só se torna possível quando há maior
acumulação e investimento de capital. Talvez eu os tenha surpreendido por não
mencionar uma medida reputada primordial na industrialização de um pais: o
protecionismo. Mas as tarifas e controles do câmbio exterior são exatamente
meios de impedir a importação de capital e a industrialização do país. A única
maneira de fomentar a industrialização é dispor de mais capital. O
protecionismo não faz mais que desviar investimentos de um ramo de negócios
para outro. (81)
Por si mesmo, o protecionismo não acrescenta coisa alguma ao capital de um
país. Para implantar uma nova fábrica, precisa-se de capital. Para modernizar
uma já existente, precisa-se de capital, não de tarifas.
não se trata, aqui, de discutir toda a questão do Livre-câmbio ou do
protecionismo. Espero que a maior parte dos manuais de economia que se
encontram no mercado, ao alcance de todos, já a apresentem adequadamente. A
78
proteção não introduz alterações positivas na situação econômica de um pais.
Também o sindicalismo certamente não vem a promover qualquer melhoria
nessa situação. Se as condições de vida são insatisfatórias e os salários são
baixos, o assalariado que tenha sua atenção voltada para os Estados Unidos e
que leia sobre o que ali se passa, ao ver em filmes, como a casa de um
americano médio é equipada de todos os confortos modernos, pode sentir uma
ponta de inveja. E tem toda razão ao dizer: "Deveríamos ter a mesma coisa."
Nas só se pode obter esta melhoria através do aumento do capital.
Os sindicatos recorrem à violência contra os empresários e contra os que
chamam de "fura-greves". Mas, a despeito de sua força e de sua violência, não
conseguem elevar de maneira contínua os salários de todos os assalariados.
Igualmente ineficazes são os decretos governamentais que estipulam pisos
salariais. O que os sindicatos conseguem de fato produzir (quando são bemsucedidos
na luta pela elevação dos salários) é um desemprego duradouro,
permanente.
Os sindicatos não têm como industrializar o país, não têm como elevar o
padrão de vida dos trabalhadores. E este é o ponto critico. É preciso
compreender que todas as políticas de um pais desejoso de elevar seu padrão de
vida devem estar voltadas para o aumento do capital investido per capita.
Aliás, este investimento de capital per capita continua a crescer nós Estados
Unidos, apesar de todas as más políticas ai adotadas. E o mesmo ocorre no
Canadá e em alguns (82) países da Europa Ocidental. Mas, lamentavelmente,
vem-se reduzindo em países como a Índia.
Lemos todos os dias nos jornais que a população mundial apresenta um
crescimento de cerca de 45 milhões de pessoas - ou até mais - por ano. Aonde
isso nos vai levar? Quais serão os resultados e as conseqüências? Lembrem do
que falei sobre a Grã-Bretanha. Em 1750, os britânicos supunham que seis
milhões de pessoas constituíam uma população excessiva para as Ilhas
Britânicas: todos estariam fadados à fome e à peste. No entanto, nas vésperas
da Última Guerra Mundial, em 1939, cinqüenta milhões de pessoas viviam nas
Ilhas Britânicas com um padrão de vida incomparavelmente superior ao padrão
79
com que se vivia em 1750. Isto era um efeito da chamada industrialização -
termo, por sinal, bastante inadequado.
O progresso da Grã-Bretanha foi gerado pelo aumento do investimento de
capital per capita. Como eu já disse antes, as nações só têm uma maneira de
alcançar a prosperidade: através do aumento do capital, com o decorrente
aumento da produtividade marginal e o crescimento dos salários reais.
Num mundo sem barreiras migratórias, haveria uma tendência à equiparação
dos padrões salariais de todos os países. Atualmente, se não existissem
barreiras à migração, é provável que vinte milhões de pessoas procurassem
ingressar nos Estados Unidos a cada ano, atraidas pelos melhores salários ai
oferecidos. Tal afluência provocaria a redução dos salários nesse país e uma
correspondente elevação em outros.
Embora não haja tempo suficiente nesta exposição para tratarmos das
barreiras migratórias, é importante deixar claro que há outro caminho capaz de
levar à equiparação salarial no mundo inteiro. E este outro caminho, que passa
a valer quando não existe a liberdade para migrar, é a migração de capital. Os
capitalistas tendem a se deslocar para aqueles países onde a mão-de-obra é
abundante e barata. E, pelo próprio fato de introduzirem capital nesses países,
provocam uma tendência à elevação dos padrões salariais. (85) Isso funcionou
no passado e funcionará no futuro do mesmo modo.
Quando houve, pela primeira vez, investimento de capital britânico na
Áustria ou na Bolívia, por exemplo, os padrões salariais ali estabelecidos eram
muito inferiores aos que prevaleciam na Grã-Bretanha. Este investimento
adicional originou, então, uma tendência à alta dos padrões salariais nesses
países, tendência está que se refletiu no mundo inteiro. É um fato bastante
conhecido que, imediatamente após a Introdução, por exemplo, da United Fruit
Company na Guatemala, o resultado foi uma tendência geral a maiores padrões
salariais. A partir dos salários pagos pela United Fruit Company criou-se, para
os demais empregadores, a necessidade de pagar, também, salários mais
elevados. Portanto, não há absolutamente razão para qualquer pessimismo em
relação ao futuro dos países "subdesenvolvidos".
80
Concordo plenamente com os Comunistas e com os sindicalistas quando
proclamam que o necessário é elevar o padrão de vida. Pouco tempo atrás, num
livro publicado nos Estados Unidos, dizia um professor: "Temos agora o
bastante de todas as coisas; por que deveria a população do mundo continuar
trabalhando tanto? Já temos tudo." Não tenho a menor dúvida de que esse
professor tenha tudo. Mas há outros povos, em outros países - e também muitas
pessoas nos Estados Unidos - que desejam e deveriam ter um melhor padrão de
vida.
Fora dos Estados Unidos - na América Latina e, mais ainda, na Ásia e na
África - todos desejam a melhoria das condições do seu país. Um padrão de
vida mais alto acarreta, também, padrões superiores de cultura e de civilização.
Assim, concordo plenamente com a meta final de elevar o padrão de vida em
toda parte. Mas discordo no tocante às medidas a serem adotadas para a
consecução deste objetivo. Que medidas levarão a atingir esta meta?
Certamente não é a proteção, nem a interferência governamental, nem o
socialismo, ou a violência dos sindicatos (84) (eufemisticamente chamada de
barganha coletiva, mas que se constitui, de fato, numa barganha na mira do
revólver).
Alcançar esta meta final de elevação do padrão de vida em toda parte é um
processo bastante lento. Para alguns, talvez demasiadamente lento. Mas não há
atalhos para o paraíso terrestre. Leva tempo, é necessário trabalhar. No entanto,
não será preciso tanto tempo quanto muitos imaginam. A equiparação virá
finalmente.
Por volta de 1840, na região ocidental da Alemanha - na Suábia e em
Württemberg, que eram na época áreas das mais Industrializadas do mundo -,
dizia-se: "Jamais conseguiremos atingir o nível dos britânicos. Os Ingleses têm
uma cabeça de vantagem e estarão sempre à nossa frente." Trinta anos mais
tarde, diziam por sua vez os britânicos: "Essa concorrência alemã é intolerável,
temos de dar um jeito nisso." Por essa época, é claro, o padrão alemão
experimentava uma rápida elevação, multo embora apenas se aproximasse do
padrão britânico. Hoje, a renda per capita alemã nada fica a dever à britânica.
81
No centro da Europa, existe um pequeno pais, a Suíça, muito pouco
aquinhoado pela natureza. Não tem minas de carvão, não tem minérios, não
tem recursos naturais. Mas, ao longo de séculos, seu povo praticou uma política
capitalista e erigiu o mais elevado padrão de vida da Europa continental. Esse
país situa-se, agora, entre os mais destacados centros de civilização do mundo.
Não vejo por que um pais como a Argentina - muito maior que a Suíça, tanto
em população quanto em extensão territorial - não poderia alcançar o mesmo
elevado padrão de vida ao cabo de alguns anos de boas políticas. Mas - como já
o frisei - é imprescindível que as políticas sejam boas. (85)

Mises revisitado: sobre a Inflação

QUARTA LIÇÃO

A INFLAÇÃO

Se a oferta de caviar fosse tão abundante quanto a de batatas, o preço do
caviar - isto é, a relação de troca entre caviar e dinheiro, ou entre caviar e
outras mercadorias - se alteraria consideravelmente. Nesse caso, seria possível
adquiri-lo a um preço muito menor que o exigido hoje. Da mesma maneira, se a
quantidade de dinheiro aumenta, o poder de compra da unidade monetária
diminui, e a quantidade de bens que pode ser adquirida com uma unidade desse
dinheiro também se reduz.
Quando, no século XVI, as reservas de ouro e prata da América foram
descobertas e exploradas, enormes quantidades desses metais preciosos foram
transportadas para a Europa. A conseqüência desse aumento da quantidade de
moeda foi uma tendência geral à elevação dos preços. Do mesmo modo,
quando, em nossos dias, um governo aumenta a quantidade de papel-moeda, a
conseqüência é a queda progressiva do poder de compra da unidade monetária
e a correspondente elevação dos preços. A isso se chama de inflação.
Infelizmente, nos Estados Unidos, bem como em outros países, alguns
preferem ver a causa da inflação não no aumento da quantidade de dinheiro,
mas na elevação dos preços.
Entretanto, nunca se apresentou qualquer contestação séria à interpretação
econômica da (52) relação entre os preços e a quantidade de dinheiro, ou da
relação de troca entre a moeda e outros bens, mercadorias e serviços. Nas
condições tecnológicas atuais, nada é mais fácil que fabricar pedaços de papel e
Imprimir sobre eles determinados valores monetários. Nos Estados Unidos,
onde todas as notas têm o mesmo tamanho, imprimir uma nota de mil dólares
não custa mais ao governo que imprimir uma de um dólar. Trata-se
exclusivamente de um processo de impressão, a exigir, nos dois casos,
idênticas quantidades de papel e de tinta.
No século XVIII, quando se fizeram as primeiras tentativas de emitir cédulas
bancárias e atribuir-lhes a qualidade de moeda corrente - isto é, o direito de
52
serem honradas em transações de troca do mesmo modo que as moedas de ouro
e prata -, os governos e as nações acreditavam que os banqueiros detinham
algum conhecimento secreto que lhes permitia produzir riqueza a partir do
nada. Quando os governos do século XVIII se viam em dificuldades
financeiras, julgavam ser suficiente, para delas se livrarem, entregar a um
banqueiro engenhoso a condução de sua administração financeira.
Alguns anos antes da Revolução Francesa, quando a realeza da França
atravessava problemas financeiros, o rei da França procurou um desses
banqueiros engenhosos e nomeou-o para uma função importante. Esse homem
era, sob todos os aspectos, o oposto das pessoas que vinham regendo a nação
até aquele momento. Para começar, não era francês, era um estrangeiro - um
genovês. Em segundo lugar, não pertencia à aristocracia, era um simples
plebeu. E, o que contava mais ainda na França do século XVIII, não era
católico, e sim protestante. E assim Monsieur Necker, pai da famosa Madame
de Staël, tornou-se o ministro das finanças, e todos esperavam que resolvesse
os problemas financeiros do país. Mas, a despeito do elevado grau de confiança
desfrutado por Monsieur Necker, os cofres reais permaneceram vazios. O
grande erro de Decker consistiu na tentativa de prestar auxilio financeiro aos
colonos (53) da América em sua guerra de independência contra a Inglaterra
sem elevar os impostos. Aquela era certamente uma maneira errada de procurar
resolver os problemas financeiros da França.
Não há nenhuma maneira secreta para a solução dos problemas financeiros
de um governo: se este precisa de dinheiro, tem de obtê-lo impondo tributos
aos seus cidadãos (ou, em circunstâncias especiais, tomando-o emprestado de
pessoas que têm dinheiro). Mas muitos governos, podemos mesmo dizer a
maioria deles, julga haver um outro método para obter o dinheiro necessário,
qual seja, o de simplesmente imprimi-lo.
Se deseja fazer algo benéfico - construir um hospital, por exemplo -, o meio
de que o governo dispõe para arrecadar o dinheiro necessário é cobrar tributos
dos cidadãos e construir o hospital com a receita assim constituída. Nesse caso,
não ocorrerá nenhuma "revolução dos preços", porque, quando o governo
53
arrecada dinheiro para a construção do hospital, os cidadãos - onerados por
esse tributo adicional - são obrigados a reduzir seus gastos. O contribuinte
individual é forçado a reduzir ou o seu consumo, ou os seus investimentos, ou a
sua poupança. Quando se apresenta no mercado como um comprador, o
governo substitui o cidadão: este passa a comprar menos. Mas isto se dá porque
o governo está comprando mais. Evidentemente, o governo não compra
exatamente os mesmos bens que os cidadãos comprariam; em média, no
entanto, não se verifica nenhuma elevação de preços em decorrência da
construção do hospital pelo governo.
Escolho o exemplo de um hospital precisamente porque é comum ouvir
dizer: "Faz diferença se o governo usa seu dinheiro para bons ou maus
propósitos." Proponho fazermos de conta que o governo sempre usa o dinheiro
que emitiu para os melhores fins - fins com que todos concordamos. Acontece
que não é o modo como o dinheiro é gasto, é antes o modo como é obtido pelo
governo que dá lugar a essa conseqüência (54) que chamamos de inflação, e
que hoje quase ninguém, no mundo todo, considera benéfica.
Por exemplo, o governo poderia, sem fomentar a inflação, usar o dinheiro
arrecadado através de impostos para contratar novos funcionários, ou para
elevar os salários dos que já estão a seu serviço. Esses funcionários, tendo tido
um aumento em seus salários, passam, então, a poder comprar mais. Quando o
governo cobra impostos dos cidadãos e aplica essa soma no aumento do salário
de seu pessoal, os contribuintes passam a ter menos o que gastar, mas os
funcionários públicos passam a ter mais: os preços em geral não subirão.
Mas, se o governo não busca, para esse fim, receita proveniente de impostos,
se, ao contrário, recorre a dinheiro recém-impresso, conseqüentemente,
algumas pessoas começam a ter mais dinheiro, enquanto todas as demais
continuam a ter o mesmo que antes. Assim, as que receberam o dinheiro
recém-impresso vão competir com aquelas que eram compradoras
anteriormente. E uma vez que não há maior número de mercadorias que antes,
mas há mais dinheiro no mercado - e uma vez que há pessoas que podem agora
comprar mais do que ontem - haverá uma demanda adicional para uma
54
quantidade inalterada de bens. Conseqüentemente, os preços tenderão a subir.
Isso não pode ser evitado, seja qual for o uso que se faça do dinheiro recémemitido.
Mas há algo ainda mais importante. Essa tendência de elevação dos preços
se estabelecerá passo a passo, uma vez que não se trata de um movimento
ascendente geral desse tão falado "nível dos preços". Esta expressão metafórica
nunca deveria ser usada.
Quando se fala de "nível dos preços", a imagem que as pessoas formam
mentalmente é a de um liquido que sobe ou desce, segundo o aumento ou a
redução de sua quantidade, mas que, como um liquido num reservatório, elevase
sempre por igual. Mas, no caso dos preços, nada há que se assemelhe a
"nível". Os preços não se alteram na mesma medida e (55) ao mesmo tempo.
Há sempre preços que mudam mais rapidamente, caem ou sobem mais
depressa que outros. E há uma razão para isso.
Considerem o caso do funcionário público que recebeu parte do novo
dinheiro acrescentado à oferta de dinheiro. As pessoas não compram num
mesmo dia precisamente as mesmas mercadorias e nas mesmas quantidades. O
dinheiro suplementar que o governo imprimiu e introduziu no mercado não é
usado na compra de todas as mercadorias e serviços. É usado na aquisição de
certas mercadorias, cujos preços subirão, ao passo que outras continuarão ainda
com os preços de antes da introdução do novo dinheiro no mercado. De sorte
que, quando a inflação começa, diferentes grupos da população são por ela
afetados de diferentes maneiras. Os grupos que recebem o novo dinheiro em
primeiro lugar ganham uma vantagem temporal.
O governo, quando emite dinheiro para custear uma guerra, tem de comprar
munições. Os primeiros a receber o dinheiro adicional são, então, as indústrias
de munição e os que nelas trabalham. Esses grupos passam a ocupar uma
posição privilegiada. Auferem maiores lucros e ganham maiores salários: seus
negócios prosperam. Por quê? Forque foram os primeiros a receber o dinheiro
adicional. E, tendo agora mais dinheiro à sua disposição, estão comprando
mais. E compram de outras pessoas, que fabricam e vendem as mercadorias
55
que lhes interessam.
Estas outras pessoas constituem um segundo grupo. E este segundo grupo
considera a inflação muito benéfica para seus negócios. Por que não? Não é
esplêndido vender mais? E o proprietário de um restaurante situado nas
vizinhanças de uma fábrica de munições, por exemplo, diz: "é realmente
maravilhoso! Os trabalhadores do setor de munições estão com mais dinheiro;
estão freqüentando meu estabelecimento como nunca; estão todos prestigiando
meu restaurante; isto me deixa muito feliz." Não vê razão alguma para se sentir
de outro modo. (56)
A situação é a seguinte: aqueles para quem o dinheiro chega em primeiro
lugar têm sua renda aumentada e podem continuar comprando muitas
mercadorias e serviços a preços que correspondem ao estado anterior do
mercado, à situação vigente às vésperas da Inflação. Encontram-se, portanto,
em situação privilegiada. E assim a inflação se expande, passo a passo, de um
grupo para outro da população. E todos os que têm acesso ao dinheiro adicional
na primeira hora da Inflação são beneficiados, uma vez que estão comprando
alguns artigos a preços ainda correspondentes ao estágio prévio da relação de
troca entre dinheiro e mercadorias.
Mas há outros grupos da população para quem esse dinheiro chega
muitíssimo mais tarde. Essas pessoas se vêem numa situação desfavorável.
Antes de terem acesso ao dinheiro adicional, são obrigadas a pagar preços mais
altos que os anteriores por algumas mercadorias que desejam adquirir (ou
praticamente todas), ao passo que sua renda permanece a mesma, ou não
aumenta na mesma proporção dos preços.
Considere-se, por exemplo, um pais como os Estados Unidos durante a
Segunda Guerra Mundial: por um lado, a inflação desse período favoreceu os
trabalhadores das fábricas de munição, as fábricas de munição e os fabricantes
de armamentos; por outro lado, prejudicou certos grupos da população. E os
maiores prejudicados foram os professores e os religiosos.
Como todos sabem, um sacerdote é pessoa de muita humildade, que está a
serviço de Deus e não deve falar demais em dinheiro. Analogamente, os
56
professores são pessoas dedicadas, de quem se espera maior preocupação com
a educação dos jovens que com os próprios salários. Por conseguinte, os
professores e os religiosos estiveram entre os grupos mais penalizados pela
inflação, visto que as várias escolas e igrejas foram as últimas instituições a se
darem conta da necessidade de elevar os salários. Quando os dignitários
eclesiásticos e as associações escolares finalmente (57) chegaram à conclusão
de que era preciso aumentar também os salários dessa gente dedicada, as
perdas que tinham sofrido até então já não podiam ser reparadas.
Por muito tempo, eles tinham sido obrigados a comprar menos que antes, a
reduzir seu consumo de alimentos melhores e mais caros, a restringir sua
compra de roupas - já que os preços tinham sido reajustados, enquanto sua
renda, seus salários, ainda não tinham sido aumentados. (Esta situação foi
consideravelmente alterada, ao menos no que diz respeito aos professores).
A cada momento, portanto, são diferentes os grupos da população que estão
sendo diretamente afetados pela inflação. Para alguns deles, a inflação não é
tão má assim, e eles chegam até a defender seu prolongamento, visto serem os
primeiros a dela se beneficiarem. Veremos na próxima palestra como essa
disparidade de conseqüências afeta vitalmente a política que conduz à inflação.
Subjacente a todas as modificações produzidas pela inflação, está o fato de
que, além de haver grupos que são por ela favorecidos, há outros que a
exploram diretamente. A palavra "explorar" não pretende refletir uma censura a
essas pessoas, pois só o governo e ninguém mais pode ser considerado culpado
e responsável pelo estabelecimento da inflação. Sempre há, sem dúvida,
pessoas que percebem o que está ocorrendo mais cedo que as demais e, então,
promovem a inflação. Seus lucros excepcionais decorrem do fato de que haverá
sempre desigualdade no processo inflacionário.
O governo pode considerar que, como método de arrecadar fundos, a
inflação é melhor que a tributação: esta é sempre impopular e de difícil
execução. Em muitas nações grandes e ricas, os legisladores muitas vezes
discutiram, por meses a fio, várias modalidades de novos impostos, tornados
necessários em decorrência de um aumento de gastos decidido pelo
57
parlamento. Após discutir inúmeros métodos de angariar dinheiro por meio da
tributação, finalmente (58) chegaram à conclusão de que talvez o melhor fosse
obtê-lo através da inflação.
É evidente que a palavra "inflação" não era pronunciada. Um político no
poder, ao recorrer à inflação, não declara: "Vou adotar a inflação como
método." Os procedimentos técnicos empregados na produção da inflação são
tão complexos, que o cidadão comum não percebe onde ela teve inicio.
Uma das maiores inflações da história, a que teve lugar no Reich alemão
após a Primeira Guerra Mundial, não teve seu pico durante a guerra. Foram os
níveis a que chegou no pós-guerra que ocasionaram a catástrofe. O governo
não anunciou: "Vamos lançar mão da inflação." Simplesmente tomou dinheiro
emprestado, indiretamente, do Banco Central. Não lhe competia perguntar
como o Banco Central reuniria e liberaria aquela soma. E o Banco Central
simplesmente imprimiu-a.
Hoje, as técnicas de produção da inflação têm como complicadores a
existência da moeda fiduciária. Isso envolve uma outra técnica, mas o efeito é o
mesmo. Com uma penada, o governo cria papel-moeda sem lastro, aumentando
assim o volume de moeda e de crédito. Basta-lhe emitir a ordem, e lá está o
dinheiro sem lastro.
O governo não se aflige diante do fato de que algumas pessoas sofrerão
perdas; a iminente elevação dos preços não o perturba. Os legisladores
proclamam: "Esse sistema é magnífico!" Mas esse magnífico sistema tem um
defeito básico: dura pouco. Se a inflação pudesse perdurar indefinidamente,
não haveria por que criticar os governos por promoverem-na, Mas o único fato
bem estabelecido acerca desse fenômeno é que, mais cedo ou mais tarde, ele
chega inevitavelmente ao fim.
Em última instância, a inflação se encerra com o colapso do meio circulante
- dando lugar a uma catástrofe, a uma situação como a ocorrida na Alemanha
em 1923. Em 1.° de agosto de 1914, o dólar correspondia a quatro marcos e
vinte pfennigs. Nove anos e três meses depois, em novembro de 1923, a (59)
mesma moeda estava cotada em 4,2 trilhões de marcos. Em outras palavras, o
58
marco já não valia coisa alguma. Já não tinha nenhum valor.
Alguns anos atrás, um famoso autor escreveu: "No final das contas,
estaremos todos mortos." Lamento confirmar que é a pura verdade. Mas a
questão é: quanto durará o momento presente? No século XVIII, houve uma
famosa senhora, Madame de Pompadour, a quem se atribuí o seguinte dito:
"Après nous, le dèluge" ("Depois de nós, o dilúvio"). Madame de Pompadour
teve a felicidade de morrer pouco tempo depois. Mas sua "sucessora", Madame
du Barry, sobreviveu um pouco mais, para, no final das contas, ser decapitada.
Para muitos o "final das contas" logo se converte no presente - e quanto mais a
inflação avança, mais se antecipa o "final das contas".
Quanto pode durar o pouco mais? Por quanto tempo pode um banco central
levar à frente um processo inflacionário? Provavelmente poderá fazê-lo
enquanto o povo estiver convencido de que o governo, mais cedo ou mais tarde
- mas certamente não demasiado tarde - sustará a impressão de dinheiro,
detendo, assim, o decréscimo do valor de cada unidade monetária.
O povo, quando deixa de acreditar que o governo será capaz de deter a
inflação, ou mesmo que ele tenha qualquer intenção de detê-la, começa a se dar
conta de que os preços amanhã serão mais altos que hoje. As pessoas põem-se,
então, a comprar a quaisquer preços, provocando uma alta em níveis tais que o
sistema monetário entra em colapso.
Tomemos o caso da Alemanha, que o mundo inteiro testemunhou. Muitos
livros descreveram os acontecimentos daquele período. (Embora sendo
austríaco, e não alemão, vi tudo de dentro: a situação da Áustria não diferia
muito da alemã, e tampouco eram diferentes as condições de muitos outros
países europeus.) Durante muitos anos, o povo alemão acreditou que sua
inflação não passava de uma situação provisória, que logo chegaria ao fim.
Acreditou nisso por nove anos, até o verão de 1923. Então, finalmente, (60) as
pessoas começaram a duvidar. Como a inflação continuava, a população julgou
mais sensato comprar txudo que estivesse à venda, em vez de guardar o
dinheiro no bolso. Ademais, as pessoas raciocinavam que não era conveniente
emprestar dinheiro, ser credor. Em contrapartida, era excelente negócio tomar
59
dinheiro emprestado, ser devedor. Assim, a inflação continuou a se alimentar
de si mesma.
A inflação prosseguiu na Alemanha até, precisamente, o dia 28 de agosto de
1923. O povo acreditara que o dinheiro inflacionário era dinheiro verdadeiro,
mas descobriu, então, que as condições tinham mudado. No outono de 1923, as
fábricas do pais pagavam aos seus trabalhadores, cada manhã, uma diária
antecipada. E o trabalhador, que se fazia acompanhar pela mulher até a fábrica,
passava-lhe imediatamente seu ganho, todos os milhões que acabara de receber.
A mulher, então, dirigia-se prontamente a uma loja, para comprar fosse o que
fosse. Ela constatava o que, na época, a maioria da população sabia: o marco
perdia, da noite para o dia, 50% de seu poder de compra. O dinheiro derretia-se
nos bolsos do povo, como uma barra de chocolate sobre um forno quente. Essa
fase final da inflação alemã não durou muito; depois de alguns dias, todo o
pesadelo se encerrara: o marco perdera todo valor e foi preciso estabelecer uma
nova moeda.
Lord Keynes, o mesmo homem que disse que no final das contas estaremos
todos mortos, foi um representante do extenso rol de autores Inflacionistas do
século XX. Todos combateram o padrão-ouro. Ao atacá-lo, Keynes chamou-o
de "relíquia bárbara". Mesmo hoje, a grande maioria das pessoas considera
ridículo falar de um retorno ao padrão-ouro. Nos Estados Unidos, por exemplo,
poderemos ser considerados como visionários se dissermos: "Mais cedo ou
mais tarde, os Estados Unidos terão de retornar ao padrão-ouro."
No entanto, o padrão-ouro tem uma extraordinária virtude: na sua vigência, a
quantidade de dinheiro disponível é independente das políticas (61)
governamentais e dos partidos políticos. Essa é a sua vantagem. Constitui uma
forma de proteção contra governos esbanjadores. Sob o padrão-ouro, se um
governo resolve fazer gastos em um novo empreendimento, o ministro das
finanças pode perguntar: "E onde vou conseguir o dinheiro? Diga-me, primeiro,
onde encontrarei dinheiro para esse gasto adicional." Num sistema
inflacionário, nada é mais simples para os políticos que ordenar ao órgão
governamental encarregado da impressão do papel-moeda a emissão de quanto
60
dinheiro lhes seja necessário para seus projetos. O padrão-ouro é muito mais
propício a um governo financeiramente seguro: seus titulares podem dizer ao
povo e aos políticos: "Não podemos fazer tal coisa, salvo se aumentarmos os
impostos."
Sob condições inflacionárias, o povo se habitua a considerar o governo uma
instituição que tem recursos ilimitados à sua disposição: o Estado, o governo,
podem tudo. Se, por exemplo, a nação deseja um novo sistema de rodovias,
espera-se do governo sua implantação. Mas onde poderá o governo obter o
dinheiro?
Pode-se dizer que hoje, nos Estados Unidos - e mesmo no passado, no
governo McKinley -, o Partido Republicano é relativamente favorável ao
dinheiro lastreado e ao padrão-ouro, enquanto o Partido Democrático é
favorável à inflação. Obviamente, a uma inflação não de papel, e sim de prata.
Contudo, foi um presidente democrata dos Estados Unidos, o presidente
Cleveland que, em fins da década de 1880, vetou uma decisão do Congresso de
conceder unia pequena soma de auxílio - cerca de dez mil dólares - a uma
comunidade que sofrera uma catástrofe. Esse presidente justificou seu veto
escrevendo as seguintes palavras: "É dever do cidadão manter o governo, mas
não é dever do governo manter os cidadãos." Estas são palavras que todo
estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para mostrar aos que
viessem pedir dinheiro. (62)
Sinto-me bastante embaraçado diante da necessidade de simplificar esses
problemas. São tantos e tão complexos os problemas envolvidos no sistema
monetário! E eu certamente não teria escrito volumes inteiros a respeito deles
se eles fossem tão simples quanto parecem sê-lo aqui. Mas os fundamentos são
precisamente estes: aumentando-se a quantidade de dinheiro, provoca-se o
rebaixamento do poder de compra da unidade monetária. É isso que desagrada
àqueles cujos negócios privados são desfavoravelmente afetados por essa
situação. São os que não se beneficiam da inflação que dela se queixam.
Se a inflação é má, e se todos sabem disso, por que se teria convertido numa
61
espécie de estilo de vida em quase todos os países? Mesmo alguns dos paises
mais ricos sofrem da doença. Os Estados Unidos são hoje seguramente a mais
rica nação do mundo, com o mais alto padrão de vida. Mas, quando se viaja
pelo pais, constata-se uma incessante referência à inflação e à necessidade de
detê-la. Mas apenas se fala; não se age.
Cabe, aqui, a apresentação de alguns fatos: após a Primeira Guerra Mundial,
a Grã-Bretanha restabeleceu a equivalência entre o ouro e a libra, numa
correspondência que vigorava antes da guerra. Isto é, elevou o valor da libra.
Com isso, elevou-se o poder de compra dos salários de todos os trabalhadores.
Num mercado desobstruído, tal alteração teria acarretado uma queda do salário
nominal em dinheiro. Esta queda, por sua vez, teria compensado a alteração.
Como resultado final, o salário real dos trabalhadores teria permanecido
inalterado. Não temos tempo para discutir agora as razões disso. O fato é que
os sindicatos da Grã-Bretanha não admitiram um ajustamento dos padrões
salariais ao poder de compra mais elevado da unidade monetária; assim sendo,
os salários reais foram consideravelmente acrescidos em decorrência daquela
medida monetária. Isso representou uma verdadeira catástrofe para a Inglaterra,
uma vez que a Grã-Bretanha é um pais predominantemente industrial,
obrigado, por um lado, a importar matérias-primas, (63) produtos semiacabados
e alimentos para sobreviver, e, por outro, a exportar bens
manufaturados para pagar essas importações. Com a elevação do valor
internacional da libra, os preços dos produtos ingleses subiram nos mercados
externos, causando um declínio das vendas e exportações. Na verdade, para
todos os efeitos, o que a Grã-Bretanha fez foi fixar os próprios preços à revelia
do mercado mundial.
Foi impossível derrotar os sindicatos. É sabido o poder que, hoje, tem um
sindicato. Assiste-lhe o direito - praticamente o privilégio - do recurso à
violência. E a determinação de um sindicato tem portanto, ousemos dizê-lo,
força equivalente à de um decreto governamental. O decreto governamental é
uma ordem para cuja aplicação o aparelho governamental - a policia - está
pronta. É preciso obedecer-lhe, ou se terá problemas com a policia.
62
Lamentavelmente temos hoje, em quase todos os países do mundo, um
segundo poder, depois do governo, com condições para exercer a força: são os
sindicatos trabalhistas. Essas entidades determinam os salários, bem como as
greves que os devem impor, da mesma maneira que o governo poderia decretar
um salário mínimo. Hão discutirei o sindicato agora; tratarei dele mais tarde.
Quero apenas deixar claro que a política sindical consiste em elevar os padrões
salariais acima do nível que estes alcançariam num mercado desobstruído. Em
conseqüência disso, uma parte considerável da população potencialmente ativa
só pode ser empregada por pessoas físicas ou por indústrias que tenham
condições de suportar prejuízos. E uma vez que os negócios não têm como se
manter sob a sangria de prejuízos, eles fecham as portas e seus trabalhadores
perdem o emprego. A fixação de padrões salariais superiores aos que se
estabeleceriam num mercado desimpedido redunda inevitavelmente no
desemprego de parcela ponderável da população ativa.
Na Grã-Bretanha, a imposição de altos padrões salariais pelos sindicatos
trabalhistas teve como conseqüência um desemprego prolongado, que (64)
durou anos a fio. Milhões de trabalhadores ficaram desempregados, os índices
de produção caíram. Até os experts ficaram perplexos. Diante deste quadro, o
governo inglês deu um passo que se lhe afigurou como uma medida de
emergência indispensável: desvalorizou a moeda corrente do pais.
O poder de compra dos salários em dinheiro - em cuja manutenção os
sindicatos tanto haviam insistido - deixou de ser o mesmo. Os salários reais, os
salários em mercadorias, foram reduzidos. Agora, o trabalhador já não podia
comprar o mesmo que antes, embora os padrões nominais dos salários tivessem
permanecido os mesmos. Procurou-se, através da adoção dessa medida,
promover o retorno dos padrões salariais reais aos níveis do mercado livre,
para que, conseqüentemente, tivesse lugar o desaparecimento do desemprego.
Essa medida - a desvalorização - foi adotada por muitos outros países, como
a França, os Países Baixos e a Bélgica. A Tchecoslováquia chegou a recorrer a
ela duas vezes no período de um ano e meio. A desvalorização tornou-se um
método sub-reptício, digamos assim, de frustrar o poder dos sindicatos. No
63
entanto, como veremos, este método também não pode ser considerado
verdadeiramente eficiente.
Alguns anos depois, os trabalhadores - e também os sindicatos - começaram
a compreender o que se passava. O povo começou a se dar conta de que a
desvalorização do dinheiro reduzia seu salário real. Os sindicatos tinham força
suficiente para se opor a isso. Em muitos países, inseriu-se nos contratos
salariais uma cláusula que estipulava que os salários em dinheiro deveriam ser
automaticamente majorados quando os preços também o fossem. A isto se
chama Indexar. Os sindicatos haviam tomado consciência da existência de
índices. Assim, aquele método de reduzir o desemprego inaugurado pela Grã-
Bretanha em 1931 - e adotado posteriormente por quase todos os governos
importantes -, já não mais funciona nos nossos dias como método de "resolver
o desemprego". (65)
Em 1936, em sua obra General Theory of Employment, Interest and Money,
Lord Keynes deplo-ravelmente elevou esse método - aquelas medidas de
emergência do período 1929-1933 - à categoria de principio, ao status de
sistema fundamental de política. Justificava sua teoria dizendo mais ou menos
o seguinte: "O desemprego é um mal. Se quiser que desapareça, inflacione o
meio circulante."
Keynes percebeu muito bem que certos padrões salariais podem ser
demasiado altos para o mercado, ou seja, podem ser altos demais para ser
lucrativo a um empregador ampliar a quantidade de empregados que contrata e,
portanto, serão, também altos demais do ponto de vista do conjunto da
população economicamente ativa, uma vez que estes padrões salariais impostos
pelos sindicatos, em níveis superiores aos do mercado, resultam em que apenas
uma parcela dos que anseiam por salários conseguem emprego.
Keynes, então, afirmou aproximadamente o seguinte: "Sem dúvida, o
desemprego em massa, prolongando-se ano após ano, é uma situação muito
insatisfatória." Mas, ao invés de sugerir que os níveis salariais podiam e deviam
ser ajustados às condições de mercado, afirmou: "Se os trabalhadores não
forem suficientemente espertos para perceber a desvalorização da moeda, eles
64
não oferecerão resistência a uma queda dos níveis salariais reais, visto que os
níveis nominais permanecerão os mesmos." Em outras palavras, Lord Keynes
estava dizendo que, se receberem a mesma quantidade de libras esterlinas que
ganhavam antes da desvalorização da moeda, as pessoas não se darão conta de
que passaram, de fato, a ganhar menos.
Num linguajar antiquado, Keynes propôs que se ludibriassem os
trabalhadores. Em vez de declarar abertamente qué os padrões salariais devem
ser ajustados às condições do mercado - porque, se não for assim, parte da
população economicamente ativa ficará inevitavelmente desempregada -,
afirmou, na verdade: "O pleno emprego só pode ser alcançado se (66) houver
inflação. Ludibriem os trabalhadores." O fato mais interessante, contudo, é que,
quando sua General Theory foi publicada, a burla já não era possível, uma vez
que as pessoas passaram a ter consciência da inflação. Mas a meta do pleno
emprego permaneceu.
Que vem a ser "pleno emprego"? Esta expressão relaciona-se com o
mercado desobstruído, não manipulado pelos sindicatos ou pelo governo.
Nesse mercado, os padrões salariais para cada tipo de trabalho tendem a atingir
um nível tal que é possível, a todos os que desejam emprego, obtê-lo. Por outro
lado, todo empregador terá, então, condições de contratar tantos trabalhadores
quantos lhe forem necessários. Se ocorrer um aumento da demanda de mão-deobra,
o padrão salarial tenderá a ser maior, se houver necessidade de menor
número de trabalhadores, esse padrão tenderá a cair.
O único método que permite a instauração de uma situação de "pleno
emprego" é a preservação de um mercado de trabalho livre de empecilhos. Isto
se aplica a todo gênero de trabalho e a todo gênero de mercadoria.
Que faz um negociante, se deseja vender determinada mercadoria por cinco
dólares a unidade? A expressão técnica que é aplicada no mundo dos negócios
dos Estados Unidos para o fato de não se conseguir vender uma mercadoria
pelo preço estipulado é "o estoque mantém-se inalterado". Mas é preciso que se
altere. O negociante não pode conservar aqueles artigos, porque tem
necessidade de adquirir novas mercadorias; as modas mudam. Assim, ele os
65
vende por um preço mais baixo. Se não conseguir vender a mercadoria por
cinco dólares, certamente a venderá por quatro. Se for impossível vendê-la por
quatro, será obrigado a vendê-la por três. Não há outra alternativa, desde que
esteja empenhado em manter seu negócio. Pode sofrer prejuízos, mas estes
decorrem do fato de que fez uma previsão errada do mercado existente para seu
produto.
O mesmo acontece com os milhares e milhares de jovens que, dia após dia,
estão vindo dos distritos (67) agrícolas para a cidade, na expectativa de ganhar
dinheiro. É o fenômeno de migração interna, que tem lugar em todas as nações
industrializadas. Nos Estados Unidos, eles vêm para a cidade com a certeza de
que poderão ganhar, digamos, cem dólares por semana. Suas expectativas
podem-se frustrar. Então, aquele que não conseguiu um emprego que pagasse
cem dólares por semana, ver-se-á obrigado a tentar conseguir algum que pague
noventa, oitenta dólares, talvez até menos. Por outro lado, se essa pessoa
declarasse, como fazem os sindicatos: "cem dólares por semana, ou nada",
talvez só lhe restasse permanecer desempregada. Diga-se de passagem, muita
gente não se incomoda com a situação de desemprego, uma vez que o governo
paga auxilios-desemprego - com fundos arrecadados através de taxas especiais
impostas aos empregadores - que por vezes são quase tão altos quanto os
salários que receberiam caso estivessem trabalhando.
Nos Estados Unidos, só se aceita a inflação porque determinado grupo de
pessoas acredita que é só através dela que o pleno emprego pode ser alcançado.
No entanto, ainda a este respeito, uma questão tem sido amplamente debatida:
O que é preferível, um dinheiro lastreado com desemprego ou a inflação com
pleno emprego? Trata-se, na verdade, de um circulo vicioso.
Tentemos analisar o problema. Logo de inicio, deve-se colocar a seguinte
questão: Como podemos melhorar a situação dos trabalhadores e de todos os
demais grupos da população? A resposta é: mantendo o mercado de trabalho
livre de empecilhos e assim alcançando o pleno emprego. Nosso dilema é: os
padrões salariais devem ser determinados pelo mercado, ou devem ser
definidos por pressão e compulsão sindical? Portanto, o cerne da questão não
66
reside na alternativa "inflação ou desemprego".
Aliás essa análise distorcida do problema vem sendo proposta na Inglaterra,
nos países industrializados da Europa e até nos Estados Unidos. Há mesmo
quem diga: "Vejam só: até os Estados Unidos (68) estão recorrendo à inflação.
Por que não deveríamos fazer o mesmo?"
A estes deveríamos responder em primeiro lugar: "Um dos privilégios do
homem rico é poder se dar ao luxo de ser insensato por muito mais tempo que o
pobre." E é esta a situação dos Estados Unidos. A política financeira desse país
é muito ruim, e está piorando. Mas certamente trata-se de um país capaz de
arcar com os custos de sua insensatez por um prazo um pouco mais longo que o
que seria tolerado por alguns outros paises.
O mais importante a lembrar é que a inflação não é um ato de Deus, que a
inflação não é uma catástrofe da natureza ou uma doença que se alastra como a
peste. A inflação é uma política, uma política premeditada, adotada por pessoas
que a ela recorrem por considerá-la um mal menor que o desemprego. Mas o
fato é que, a não ser em curtíssimo prazo, a inflação não cura o desemprego.
A inflação é uma política. E uma política pode ser alterada. Assim sendo,
não há razão para nos deixarmos vencer por ela. Se a temos na conta de um
mal, então é preciso estancá-la. É preciso equilibrar o orçamento do governo.
Evidentemente, o apoio da opinião pública é necessário para isso. E cabe aos
intelectuais ajudar o povo a compreender. Uma vez assegurado o apoio da
opinião pública, os representantes eleitos do povo certamente terão condições
de abandonar a política da inflação.
Devemos lembrar que, no final das contas, poderemos estar todos mortos.
Aliás, não restam dúvidas de que estaremos mesmo mortos. Mas deveríamos
cuidar de nossos assuntos terrenos - neste breve intervalo em que nos é dado
viver - da melhor maneira possivel. E uma das medidas necessárias para esse
propósito é abandonar as políticas inflacionárias. (69)

Mises revisitado: sobre o Intervencionismo do Estado

TERCEIRA LIÇÃO

O INTERVENCIONISMO

Diz uma frase famosa, muito citada: "O melhor governo é o que menos
governa." Esta não me parece uma caracterização adequada das funções de um
bom governo. Compete a ele fazer todas as coisas para as quais ele é necessário
e para as quais foi instituído. Tem o dever de proteger as pessoas dentro do pais
contra as investidas violentas e fraudulentas de bandidos, bem como de
defender o país contra inimigos externos. São estas as funções do governo num
sistema livre, no sistema da economia de mercado.
No socialismo, obviamente, o governo é totalitário, nada escapando à sua
esfera e sua jurisdição. Mas na economia de mercado, a principal incumbência
do governo é proteger o funcionamento harmônico desta economia contra a
fraude ou a violência originadas dentro ou fora do pais.
Os que discordam desta definição das funções do governo poderão dizer:
"Este homem abomina o governo." Nada poderia estar mais longe da verdade.
Se digo que a gasolina é um liquido de grande serventia, útil para muitos
propósitos, mas que, não obstante, eu não a beberia, por não me parecer esse o
uso próprio para o produto, não me converto por isso num inimigo da gasolina,
nem se poderia dizer que odeio a gasolina. Digo apenas que ela é muito útil
para determinados fins, mas inadequada para outros. Se digo que é dever do
governo prender assassinos e demais (35) criminosos, mas que não é seu dever
abrir estradas ou gastar dinheiro em inutilidades, não quer dizer que eu odeie o
governo apenas por afirmar que ele está qualificado para fazer determinadas
coisas, mas não o está para outras.
Já se disse que, nas condições atuais, não temos mais uma economia de
mercado livre. O que temos nas condições presentes é algo a que se dá o nome
de "economia mista". E como provas da efetividade dessa nossa "economia
mista", apontam-se as muitas empresas de que o governo é proprietário e
gestor. A economia é mista, diz-se, porque, em muitos países, determinadas
instituições - como as companhias de telefone e telégrafo, as estradas de ferro -
37
são de posse do governo e administradas por ele.
Não há dúvida de que algumas dessas instituições e empresas são geridas
pelo governo. Mas esse fato não é suficiente para alterar o caráter do nosso
sistema econômico. Nem sequer significa que se tenha instalado um "pequeno
socialismo" no âmago do que seria - não fosse a intrusão dessas empresas de
gestão governamental - a economia de mercado livre e não socialista. Isto
porque o governo, ao dirigir essas empresas, está subordinado à supremacia do
mercado, o que significa que está subordinado à supremacia dos consumidores.
Ao administrar, digamos, o correio ou as estradas de ferro, ele é obrigado a
contratar pessoal para trabalhar nessas empresas. Precisa também comprar as
matérias-primas e os demais produtos necessários à operação das mesmas. E,
por outro lado, o governo "vende" esses serviços e mercadorias para o público.
Todavia, embora administre essas instituições utilizando os métodos do sistema
econômico livre, o resultado, via de regra, é um déficit. O governo, contudo,
tem condições de financiar esse déficit - pelo menos é esta a firme convicção
não só dos seus integrantes como também dos que se ligam ao partido no
poder.
A situação do indivíduo é bem diversa. Sua capacidade de gerir um
empreendimento deficitário é muito restrita. Se o déficit não for logo
eliminado, (36) e se a empresa não se tomar lucrativa (ou pelo menos dar
mostras de que não está incorrendo em déficits ou prejuízos adicionais), o
indivíduo vai à falência e a empresa acaba.
Já o governo goza de condições diferentes. Pode ir em frente com um déficit,
porque tem o poder de impor tributos à população. E se os contribuintes se
dispuserem a pagar impostos mais elevados para permitir ao governo
administrar uma empresa deficitária - isto é, administrar com menos eficiência
do que o faria uma instituição privada -, ou seja, se o público tolerar esse
prejuízo, então obviamente a empresa se manterá em atividade.
Nos últimos anos, na maioria dos países, procedeu-se à estatização de um
número crescente de instituições e empresas, a tal ponto que os déficits
cresceram muito além do montante possível de ser arrecadado dos cidadãos
38
através de impostos. O que acontece nesse caso não é o tema da palestra de
hoje. A conseqüência é a inflação, assunto que devo abordar amanhã.
Mencionei isso apenas porque a economia mista não deve ser confundida com
o problema do intervencionismo, sobre o qual quero falar esta noite.
Que é o intervencionismo? O intervencionismo significa a não-restrição, por
parte do governo, de sua atividade, em relação à preservação da ordem, ou -
como se costumava dizer cem anos atrás - em relação à "produção da
segurança". O intervencionismo revela um governo desejoso de fazer mais.
Desejoso de interferir nos fenômenos de mercado.
Alguém que discorde, afirmando que o governo não deveria intervir nos
negócios, poderá ouvir, com muita freqüência, a seguinte resposta: "Mas o
governo sempre interfere, necessariamente. Se há policiais nas ruas, o governo
está interferindo. Interfere quando um assaltante rouba uma loja ou quando
evita que alguém furte um automóvel”. Mas quando falamos de
intervencionismo, e definimos o significado do termo, referimo-nos à
interferência governamental no mercado. (Que o governo e a polícia se
encarreguem de proteger os cidadãos, e entre eles os homens de (37) negócio e,
evidentemente, seus empregados, contra ataques de bandidos nacionais ou do
exterior, é efetivamente uma expectativa normal e necessária, algo a se esperar
de qualquer governo. Essa proteção não constitui uma intervenção, pois a única
função legitima do governo é, precisamente, produzir segurança.)
Quando falamos de intervencionismo, referimo-nos ao desejo que
experimenta o governo de fazer mais que impedir assaltos e fraudes. O
intervencionismo significa que o governo não somente fracassa em proteger o
funcionamento harmonioso da economia de mercado, como também interfere
em vários fenômenos de mercado: interfere nos preços, nos padrões salariais,
nas taxas de juro e de lucro.
O governo quer interferir com a finalidade de obrigar os homens de negócio
a conduzir suas atividades de maneira diversa da que escolheriam caso
tivessem de obedecer apenas aos consumidores. Assim, todas as medidas de
intervencionismo governamental têm por objetivo restringir a supremacia do
39
consumidor. O governo quer arrogar a si mesmo o poder - ou pelo menos parte
do poder - que, na economia de mercado livre, pertence aos consumidores.
Consideremos um exemplo de intervencionismo bastante conhecido em
muitos países e experimentado, vezes sem conta, por inúmeros governos,
especialmente em tempos de inflação. Refiro-me ao controle de preços.
Em geral, os governos recorrem ao controle de preços depois de terem
inflacionado a oferta de moeda e de a população ter começado a se queixar do
decorrente aumento dos preços. Há muitos e famosos exemplos históricos do
fracasso de métodos de controle dos preços, mas mencionarei apenas dois,
porque em ambos os governos foram, de fato, extremamente enérgicos ao
impor, ou tentar impor, seus controles de preço.
O primeiro exemplo famoso é o caso do imperador romano Diocleciano,
notório como o último (38) imperador romano a perseguir os cristãos. Na
segunda metade do século III, os imperadores romanos dispunham de um único
método financeiro: desvalorizar a moeda corrente por meio de sua adulteração.
Nessa época primitiva, anterior à invenção da máquina impressora, até a
inflação era, por assim dizer, primitiva. Envolvia o enfraquecimento do teor da
liga metálica com que se cunhavam as moedas, especialmente as de prata. O
governo misturava à prata quantidades cada vez maiores de cobre, até que a cor
das moedas se alterou e o peso se reduziu consideravelmente. A conseqüência
dessa adulteração das moedas e do aumento associado da quantidade de
dinheiro em circulação foi uma alta dos preços, seguida de um decreto
destinado a controlá-los. E os imperadores romanos não primavam pela
moderação no fazer cumprir suas leis: a morte não lhes parecia uma punição
demasiado severa para quem ousasse cobrar preços mais elevados que os
estipulados. Conseguiram impor o controle de preços, mas foram incapazes de
preservar a sociedade. A conseqüência foi a desintegração do Império Romano
e do sistema da divisão do trabalho.
Quinze séculos mais tarde, a mesma adulteração do dinheiro teve lugar
durante a Revolução Francesa. Mas desta vez utilizou-se um método diferente.
A tecnologia para a produção de dinheiro fora consideravelmente aperfeiçoada.
40
Os franceses já não precisavam recorrer à adulteração da liga metálica
empregada na cunhagem das moedas: tinham a máquina impressora. E esta era
extremamente eficiente. Mais uma vez, o resultado foi uma elevação dos
preços sem precedentes. Mas na Revolução Francesa os preços máximos não
foram garantidos através do mesmo método de aplicação da pena capital de que
lançara mão o imperador Diocleciano. Produzira-se um aperfeiçoamento
também na técnica de matar cidadãos. Todos se lembram do famoso doutor J. I.
Guillotin (1738-1814), o inventor da guilhotina. No entanto, apesar da
guilhotina, os franceses também fracassaram com suas leis de preço máximo.
Quando chegou a vez de Robespierre ser conduzido numa carroça (39) rumo à
guilhotina, o povo gritava: "Lá vai o bandido-mor!"
Se menciono este fato é porque é comum ouvir: "O que é preciso para dar
eficácia e eficiência ao controle de preços é apenas maior implacabilidade e
maior energia." Ora, Diocleciano foi indubitavelmente implacável, como
também o foi a Revolução Francesa. Não obstante, as medidas de controle de
preço fracassaram por completo em ambos os casos.
Analisemos agora as razões desse fracasso. O governo ouve as queixas do
povo de que o preço do leite subiu. E o leite é, sem dúvida, muito importante,
sobretudo para a geração em crescimento, para as crianças. Por conseguinte,
estabelece um preço máximo para esse produto, preço máximo que é inferior
ao que seria o preço potencial de mercado. Então o governo diz: "Estamos
certos de que fizemos tudo o que era preciso para permitir aos pobres a compra
de todo o leite de que necessitam para alimentar os filhos."
Mas que acontece? Por um lado, o menor preço do leite provoca o aumento
da demanda do produto; pessoas que não tinham meios de comprá-lo a um
preço mais alto, podem agora fazê-lo ao preço reduzido por decreto oficial. Por
outro lado, parte dos produtores de leite, aqueles que estão produzindo a custos
mais elevados - isto é, os produtores marginais - começam a sofrer prejuízos,
visto que o preço decretado pelo governo é inferior aos custos do produto. Este
é o ponto crucial na economia de mercado.
O empresário privado, o produtor privado, não pode sofrer prejuízo no
41
cômputo final de suas atividades. E como não pode ter prejuízos com o leite,
restringe a venda deste produto para o mercado. Pode vender algumas de suas
vacas para o matadouro; pode também, em vez de leite, fabricar e vender
derivados do produto, como coalhada, manteiga ou queijo.
A interferência do governo no preço do leite redunda, pois, em menor
quantidade do produto do que a que havia antes, redução que é concomitante a
uma ampliação da demanda. Algumas pessoas dispostas (40) a pagar o preço
decretado pelo governo não conseguirão comprar leite. Outro efeito é a
precipitação de pessoas ansiosas por chegarem em primeiro lugar às lojas. São
obrigadas a esperar do lado de fora. As longas filas diante das lojas parecem
sempre um fenômeno corriqueiro numa cidade em que o governo tenha
decretado preços máximos para as mercadorias que lhe pareciam importantes.
Foi o que se passou em todos os lugares onde o preço do leite foi controlado.
Por outro lado, isso foi sempre prognosticado pelos economistas - obviamente
apenas pelos economistas sensatos, que, aliás, não são muito numerosos.
Mas qual é a conseqüência do controle governamental de preços? O governo
se frustra. Pretendia aumentar a satisfação dos consumidores de leite, mas na
verdade, descontentou-os. Antes de sua interferência, o leite era caro, mas era
possível comprá-lo. Agora a quantidade disponível é insuficiente. Com isso, o
consumo total se reduz. As crianças passam a tomar menos leite, e chegam a
não mais tomá-lo. A medida a que o governo recorre em seguida é o
racionamento. Mas racionamento significa tão-somente que algumas pessoas
são privilegiadas e conseguem obter leite, enquanto outras ficam sem nenhum.
Quem obtém e quem não obtém é obviamente algo sempre determinado de
forma muito arbitrária. Pode ser estipulado, por exemplo, que crianças com
menos de quatro anos de idade devem tomar leite, e aquelas com mais de
quatro, ou entre quatro e seis, devem receber apenas a metade da ração a que as
menores fazem jus.
Faça o governo o que fizer, permanece o fato de que só há disponível uma
menor quantidade de leite. Conseqüentemente, a população está ainda mais
insatisfeita que antes. O governo pergunta, então, aos produtores de leite
42
(porque não tem imaginação suficiente para descobrir por si mesmo): "Por que
não produzem a mesma quantidade que antes?" Obtém a resposta: "É
impossível, uma vez que os custos de produção são superiores ao preço
máximo fixado pelo governo." As autoridades se põem em seguida a estudar
(41) os custos dos vários fatores de produção, vindo a descobrir que um deles é
a forragem. .
"Pois bem", diz o governo, "o mesmo controle que impusemos ao leite,
vamos aplicar agora à forragem. Determinaremos um preço máximo para ela e
os produtores de leite poderão alimentar seu gado a preços mais baixos, com
menor dispêndio. Com isto, tudo se resolverá: os produtores de leite terão
condições de produzir em maior quantidade e venderão mais."
Que acontece nesse caso? Repete-se, com a forragem, a mesma história
acontecida com o leite, e, como é fácil depreender, pelas mesmíssimas razões.
A produção de forragem diminui e as autoridades se vêem novamente diante de
um dilema. Nessas circunstâncias, providenciam novos interlocutores, nó
intuito de descobrir o que há de errado com a produção de forragem. E recebem
dós produtores de forragem uma explicação idêntica à que lhes fora fornecida
pelos produtores de leite. De sorte que o governo é compelido a dar um outro
passo, já que não quer abrir mão do princípio do controle de preços. Determina
preços máximos para os bens de produção necessários à produção de forragem.
E a mesma história, mais uma vez, se desenrola.
Assim, o governo começa a controlar não mais apenas o leite, mas também
os ovos, a carne e outros artigos essenciais. E todas as vezes alcança o mesmo
resultado, por toda parte a conseqüência é a mesma. A partir do momento em
que fixa preços máximos para bens de consumo, vê-se obrigado a recuar no
sentido dos bens de produção, e a limitar os preços dos bens de produção
necessários à elaboração daqueles bens de consumo com preços tabelados. E
assim o governo, que começara com o controle de alguns poucos fatores, recua
cada vez mais em direção à base do processo produtivo, fixando preços
máximos para todas as modalidades de bens de produção, incluindo-se aí,
evidentemente, o preço da mão-de-obra, pois, sem controle salarial, o "controle
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(42) de custos" efetuado pelo governo seria um contra-senso.
Ademais, o governo não tem como limitar sua interferência no mercado
apenas ao que se lhe afigura como bem de primeira necessidade: leite,
manteiga, ovos e carne. Precisa necessariamente incluir os bens de luxo,
porquanto, se não limitasse seus preços, o capital e a mão-de-obra
abandonariam a produção dos artigos de primeira necessidade e acorreriam à
produção dessas mercadorias que o governo reputa supérfluas. Portanto, a
interferência isolada no preço de um ou outro bem de consumo sempre gera
efeitos - e é fundamental compreendê-lo - ainda menos satisfatórios que as
condições que prevaleciam anteriormente: antes da interferência, o leite e os
ovos são caros; depois, começam a sumir do mercado.
O governo considerava esses artigos tão importantes que interferiu; queria
torná-los mais abundantes, ampliar sua oferta. O resultado foi o contrário: a
interferência isolada deu origem a uma situação que - do ponto de vista do
governo - é ainda mais indesejável que a anterior, que se pretendia alterar. E o
governo acabará por chegar a um ponto em que todos os preços, padrões
salariais, taxas de juro, em suma, tudo o que compõe o conjunto do sistema
econômico, é determinado por ele. E isso, obviamente, é socialismo.
O que lhes apresentei aqui, nesta explanação esquemática e teórica, foi
precisamente o que ocorreu nos países que tentaram impor preços máximos,
países cujos governos foram teimosos o bastante para avançarem passo a passo
até a própria derrocada. Foi o que aconteceu, na Primeira Guerra Mundial, com
a Alemanha e a Inglaterra.
Analisemos a situação que existia nos dois países. Ambos experimentavam a
inflação. Como os preços subiam, os dois governos impuseram controles sobre
eles. Tendo começado com apenas alguns preços, nada mais que leite e ovos,
foram forçados a avançar cada vez mais. Mais a guerra se prolongava, maior se
tornava a inflação. E após três anos de guerra, (43) os alemães - de maneira
sistemática, como é de seu estilo - elaboraram um grande plano. Chamaram-no
Plano Hindenburg (naquela época, tudo na Alemanha que parecia bom ao
governo era batizado de Hindenburg.)
44
O Plano Hindenburg estabelecia o controle governamental sobre todo o
sistema econômico do pais: preços, salários, lucros..., tudo. E a burocracia
tratou imediatamente de pôr em prática este plano. Mas, antes de conclui-lo,
veio a derrocada: o Império Alemão desintegrou-se, o aparelho burocrático
esfacelou-se, a revolução produziu seus efeitos terríveis - tudo chegou ao fim.
Os fatos, na Inglaterra, inicialmente ocorreram dessa mesma maneira, mas,
depois de algum tempo, na primavera de 1917, os Estados Unidos entraram na
guerra e abasteceram os ingleses com quantidades suficientes de tudo. Dessa
forma, o caminho do socialismo, o caminho da servidão, foi obstado.
Antes da ascensão de Hitler ao poder, o controle de preços foi mais uma vez
introduzido na Alemanha pelo chanceler Brüning, pelas razões de costume. O
próprio Hitler aplicou-o antes mesmo do início da guerra: na Alemanha de
Hitler não havia empresa privada ou iniciativa privada. Na Alemanha de Hitler
havia um sistema de socialismo que só diferia do sistema russo na medida em
que ainda eram mantidos a terminologia e os rótulos do sistema de livre
economia. Ainda existiam "empresas privadas", como eram denominadas. Mas
o proprietário já não era um empresário; chamavam-no "gerente" ou "chefe" de
negócios(Betriebsführer).
Todo o país foi organizado numa hierarquia de führers; havia o Führer
supremo, obviamente Hitler, e em seguida uma longa sucessão de führers, em
ordem decrescente, até os führers do último escalão. E, assim, o dirigente de
uma empresa era o Betriebsführer. O conjunto de seus empregados, os
trabalhadores da empresa, era chamado por uma palavra que, na Idade Média,
designara o séquito de um senhor (44) feudal: o Gefolgschaft. E toda essa gente
tinha de obedecer às ordens expedidas por uma instituição que ostentava o
nome assustadoramente longo de Reichs-führerwirtschaftsministerium, a cuja
frente estava o conhecido gorducho Göring, enfeitado de jóias e medalhas.
E era desse corpo de ministros de nome tão comprido que emanavam todas
as ordens para todas as empresas: o que produzir, em que quantidade, onde
comprar matérias-primas e quanto pagar por elas, a quem vender os produtos e
a que preço. Os trabalhadores eram designados para determinadas fábricas e
45
recebiam salários decretados pelo governo. Todo o sistema econômico era
agora regulado, em seus mínimos detalhes, pelo governo.
O Betriebsführer não tinha o direito de se apossar dos lucros; recebia o
equivalente a um salário e, se quissesse receber uma soma maior, diria, por
exemplo: "Estou muito doente, preciso me submeter a uma operação
imediatamente, e isso custará quinhentos marcos." Nesse caso, era obrigado a
consultar o führer do distrito (o Gauführer ou Gualelter), que o autorizaria - ou
não - a fazer uma retirada superior ao salário que lhe era destinado. Os preços
já não eram preços, os salários já não eram salários - não passavam de
expressões quantitativas num sistema de socialismo.
Permitam-me agora contar-lhes como esse sistema entrou em colapso. Um
dia, após anos de combate, os exércitos estrangeiros chegaram à Alemanha.
Procuraram conservar esse sistema econômico de direção governamental; mas
para isso teria sido necessária a brutalidade de Hitler. Sem ela, o sistema não
funcionou.
Enquanto isso acontecia na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, a
Grã-Bretanha fazia exatamente a mesma coisa: a partir do controle do preço de
algumas mercadorias, o governo britânico começou, passo a passo (assim como
Hitler procedera em tempo de paz, antes mesmo de deflagrada a guerra), a
controlar cada vez mais a economia, até que, por (45) ocasião do término da
guerra, tinham chegado a algo muito próximo do puro socialismo.
A Grã-Bretanha não foi conduzida ao socialismo pelo governo do Partido
Trabalhista, estabelecido em 1945. Ela se tornou socialista durante a guerra, ao
longo do governo que tinha à frente, como primeiro-ministro, Sir Winston
Churchill. O governo trabalhista simplesmente manteve o sistema de
socialismo já introduzido pelo governo de Sir Winston Churchill. E isso a
despeito da grande resistência do povo.
A estatizações efetuadas na Grã-Bretanha não tiveram grande significado. A
estatização do Banco da Inglaterra foi inócua visto que essa instituição
financeira já estava sob completo controle governamental. E o mesmo se deu
com a estatização das estradas de ferro e da indústria do aço. O "socialismo de
46
guerra", como era chamado - denotando o sistema de intervencionismo
implantando passo a passo - já estatizara praticamente todo o sistema.
A diferença entre o sistema alemão e o britânico não foi significativa,
porquanto seus gestores tinham sido designados pelo governo e, em ambos os
casos, eram obrigados a cumprir as ordens do governo em todos os detalhes.
Como eu disse antes, o sistema dos nazistas alemães conservou os rótulos e
termos da economia capitalista de livre mercado. Mas essas expressões
adquiriram um significado muito diverso: já não passavam agora de decretos
governamentais.
Isto também se aplica ao sistema britânico. Quando o Partido Conservador
foi reconduzido ao poder, alguns desses controles foram suprimidos. Temos
hoje na Grã-Bretanha tentativas, por um lado, de conservar os controles e, por
outro, de aboli-los. (Mas não se deve esquecer que as condições existentes na
Inglaterra são muito diferentes das que prevalecem na Rússia.) O mesmo se
passou em outros países que, por dependerem da importação de alimentos e de
matérias-primas, foram obrigados a exportar bens manufaturados. Em países
profundamente dependente (46) do comércio de exportações, um sistema de
controle governamental simplesmente não funciona.
Assim, a subsistência de alguma liberdade econômica (e ainda existe uma
substancial liberdade em países como a Noruega, a Inglaterra, a Suécia) é fruto
da necessidade de preservar o comércio de exportação. Aliás, se escolhi
anteriormente o exemplo do leite, não foi por ter alguma predileção especial
pelo produto, mas porque praticamente todos os governos - ou sua grande
maioria - regulamentaram, nas últimas décadas, os preços do leite, dos ovos ou
da manteiga.
Quero lembrar, em poucas palavras, um outro exemplo, o do controle do
aluguel. Uma das conseqüências do controle dos aluguéis por parte do governo
é que pessoas que teriam - por causa de alterações na situação familiar - de
mudar de apartamentos maiores para outros menores, já não o fazem.
Considere-se, por exemplo, um casal cujos filhos saíram de casa em outras
cidades. Casais como este tendiam a se mudar, passando a habitar apartamentos
47
menores e mais baratos. Com a imposição do controle sobre os aluguéis, essa
necessidade desaparece.
Em Viena, no começo da década de 20, o controle do aluguel estava
firmemente estabelecido. Assim, a quantia que um locador recebia por um
apartamento de dimensões médias, submetido a controle de aluguel, não
excedia o dobro do preço de uma passagem de bonde - sistema de transporte
pertencente à municipalidade. Pode-se imaginar que não se tinha incentivo
algum para mudar de apartamento. E, por outro lado, não se construíam novas
casas. Condições semelhantes prevaleceram nos Estados Unidos após a
Segunda Guerra Mundial e perduram até hoje em muitas cidades americanas.
Uma das principais razões por que multas cidades nos Estados Unidos se
encontram em enorme dificuldade financeira reside na adoção do controle
sobre os aluguéis, com a decorrente escassez de moradias. Ela se produziu
pelas mesmas razões que acarretaram a escassez do leite quando seu preço foi
controlado. (47) Isto significa: sempre que se interfere no mercado, o governo
é progressivamente impelido ao socialismo.
E esta é a resposta aos que dizem: "Não somos socialistas, não queremos que
o governo controle tudo. Mas por que não poderia ele interferir um pouco no
mercado? Por que não poderia abolir determinadas coisas que nos
desagradam?"
Essas pessoas falam de uma política de "meio-termo". O que não se percebe
é que a interferência isolada, isto é, a interferência num único pequeno detalhe
do sistema econômico, produz uma situação que ao próprio governo - e àqueles
que estão reivindicando a sua interferência - parecerá pior que aquelas
condições que se pretendia abolir: os que propunham o controle dos aluguéis
ficam irritados ao se darem conta da escassez de apartamentos e moradias em
geral.
Mas essa escassez de moradias foi gerada precisamente pela interferência do
governo, pela fixação dos aluguéis num padrão inferior ao que se iria pagar
num sistema de livre mercado.
A idéia de que existe, entre o socialismo e o capitalismo, um terceiro
48
sistema - como o chamam seus defensores -, o qual, sendo equidistante do
socialismo e do capitalismo, conservaria as vantagens e evitaria as
desvantagens de um e de outro, é puro contra-senso. Os que acreditam na
existência possível desse sistema mítico podem chegar a ser realmente líricos
quando tecem loas ao intervencionismo. Só o que se pode dizer é que estão
equivocados. A interferência governamental que exaltam dá lugar a situações
que desagradariam a eles mesmos.
Uma das questões que abordarei mais tarde é a do protecionismo: o governo
procura isolar o mercado interno do mercado mundial. Introduz tarifas que
elevam o preço interno da mercadoria acima do preço em que é cotada no
mercado mundial, o que possibilita aos produtores nacionais a formação de
cartéis. Logo em seguida, o mesmo governo investe (48) contra os cartéis,
declarando: "Nestas condições, impõe-se uma legislação anticartel."
Foi precisamente esse o procedimento da maioria dos governos europeus.
Nos Estados Unidos, somam-se a isso razões adicionais para a legislação
antitruste e para a campanha governamental contra o fantasma do monopólio.
É absurdo ver o governo - que gera, por meio do próprio intervencionismo,
as condições que possibilitam a emergência de cartéis nacionais - voltar-se
contra o meio empresarial, dizendo: "Há cartéis, portanto é necessária a
interferência do governo nos negócios." Seria muito mais simples evitar a
formação de cartéis sustando a interferência governamental no mercado -
interferência esta que vem a gerar as possibilidades de formação desses cartéis.
A idéia da interferência governamental como "solução" para problemas
econômicos dá margem, em todos os países, a circunstâncias no mínimo
extremamente insatisfatórias e, com freqüência, caóticas. Se não for detida a
tempo, o governo acabará por implantar o socialismo.
Não obstante, a interferência do governo nos negócios continua a gozar de
grande aceitação. Mal acontece no mundo algo que desagrada às pessoas é
comum ouvir-se o comentário: "O governo precisa fazer alguma coisa a
respeito. Para que temos governo? O governo deveria fazer isso. " Temos aqui
um vestígio característico do modo de pensar de épocas passadas, de eras
49
anteriores à liberdade moderna, ao governo constitucional moderno, anteriores
ao governo representativo ou ao republicanismo moderno.
Ao longo de séculos, manteve-se a doutrina - afirmada e acatada por todos -
de que um rei, um rei ungido, era o mensageiro de Deus; era mais sábio que os
seus súditos e possuía poderes sobrenaturais. Até princípios do século XIX,
pessoas que sofriam certas doenças esperavam ser curadas pelo simples toque
da mão do rei. Os médicos costumavam ser mais eficazes: mesmo assim,
permitiam aos seus pacientes experimentar o rei. (49)
Essa doutrina da superioridade de um governo paterna1 e dos poderes sobrehumanos
dos reis hereditários extinguiu-se gradativamente - ou, pelo menos,
assim imaginávamos. Mas ela ressurgiu. O professor alemão Werner Sombart
(a quem conheci muito bem), homem de renome mundial, foi doutor honoris
causa de várias universidades e membro honorário da American Economic
Association. Esse professor escreveu um livro que tem tradução para o inglês -
publicada pela Princeton University Press -, para o francês e provavelmente
também para o espanhol. Ou melhor, espero que tenha, para que todos possam
conferir o que vou dizer. Nesse livro, publicado não nas "trevas" da Idade
Média, mas no nosso século, esse professor de economia diz simplesmente o
seguinte: "O Führer, nosso Führer" - refere-se, é claro, a Hitler - "recebe
instruções diretamente de Deus, o Führer do universo."
Já me referi antes a essa hierarquia de führers e nela situei Hitler como o
"Führer Supremo"... Mas, ao que nos informa Werner Sombart, há um Führer
em posição ainda mais elevada. Deus, o Führer do universo. E Deus, escreve
ele, transmite suas instruções diretamente a Hitler. naturalmente, o professor
Sombart não deixou de acrescentar, com muita modéstia: "não sabemos como
Deus se comunica com o Führer. Mas o fato não pode ser negado."
Ora, se ficamos sabendo que semelhante livro pôde ser publicado em alemão
- a língua de um pais outrora exaltado como "a nação dos filósofos e dos
poetas" -, e o vemos traduzido em inglês e francês, já não nos espantará que
mesmo um pequeno burocrata venha, um dia, a se considerar mais sábio e
melhor que os demais cidadãos, e deseje interferir em tudo, ainda que ele não
50
passe de um reles burocratazinho, em nada comparável ao famoso professor
Werner Sombart, membro honorário de tudo quanto é entidade.
Haveria um remédio contra tudo isso? Eu diria que sim. Há um remédio. E
esse remédio é a força dos cidadãos: cabe-lhes impedir a implantação de um
(50)
regime tão autoritário que se abrogue uma sabedoria superior à do cidadão
comum. Esta é a diferença fundamental entre a liberdade e a servidão.
As nações socialistas atribuíram a si mesmas a designação de democracia.
Os russos chamam seu sistema de Democracia Popular; provavelmente
sustentam que o povo está representado na pessoa do ditador. Penso que aqui,
na Argentina, um ditador recebeu a resposta que merecia. Esperamos que
outros ditadores, em outras nações, recebam resposta semelhante. (51)
51