O MAL DE PORTUGAL CHAMA-SE SOCIALISMO

A doença de que padecemos tem um nome: EXCESSO DE ESTADO, ou numa palavra: SOCIALISMO

terça-feira, abril 29

Mises revisitado: sobre o Socialismo

SEGUNDA LIÇÃO

O SOCIALISMO

Estou em Buenos Aires a convite do Centro de Difusión de la Economia
Libre. Que vem a ser economia livre? Que significa esse sistema de liberdade
econômica? A resposta é simples: é a economia de mercado, é o sistema em
que a cooperação dos indivíduos na divisão social do trabalho se realiza pelo
mercado. E esse mercado não é um lugar: é um processo, é a forma pela qual,
ao vender e comprar, ao produzir e consumir, as pessoas estão contribuindo
para o funcionamento global da sociedade.
Quando falamos desse sistema de organização econômica - a economia de
mercado - empregamos a expressão "liberdade econômica". Freqüentemente as
pessoas se equivocam quanto ao seu significado, supondo que liberdade
econômica seja algo inteiramente dissociado de outras liberdades, e que estas
outras liberdades - que reputam mais importantes .- possam ser preservadas
mesmo na ausência de liberdade econômica. Mas liberdade econômica
significa, na verdade, que é dado às pessoas que a possuem o poder de escolher
o próprio modo de se integrar ao conjunto da sociedade. A pessoa tem o direito
de escolher sua carreira, tem liberdade para fazer o que quer.
É óbvio que não compreendemos liberdade no sentido que hoje tantos
atribuem à palavra. O que queremos dizer é antes que, através da liberdade
econômica, o homem é libertado das condições naturais.(17) Nada há, na
natureza, que possa ser chamado de liberdade; há apenas a regularidade das leis
naturais, a que o homem é obrigado a obedecer para alcançar qualquer coisa.
Quando se trata de seres humanos, atribuímos à palavra liberdade o
significado exclusivo de liberdade na sociedade. Não obstante, muitos
consideram que as liberdades sociais são independentes umas das outras. Os
que hoje se intitulam "liberais" têm reivindicado programas que são exatamente
o oposto das políticas que os liberais do século XIX defendiam em seus
programas liberais. Os pretensos liberais de nossos dias sustentam a idéia muito
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difundida de que as liberdades de expressão, de pensamento, de imprensa, de
culto, de encarceramento sem julgamento podem, todas elas, ser preservadas
mesmo na ausência do que se conhece como liberdade econômica. Não se dão
conta de que, num sistema desprovido de mercado, em que o governo
determina tudo, todas essas outras liberdades são ilusórias, ainda que postas em
forma de lei e inscritas na constituição.
Tomemos como exemplo a liberdade de imprensa. Se for dono de todas as
máquinas impressoras, o governo determinará o que deve e o que não deve ser
impresso. Nesse caso, a possibilidade de se publicar qualquer tipo de critica às
idéias oficiais torna-se praticamente nula. A liberdade de imprensa desaparece.
E o mesmo se aplica a todas as demais liberdades.
Quando há economia de mercado, o indivíduo tem a liberdade de escolher
qualquer carreira que deseje seguir, de escolher seu próprio modo de inserção
na sociedade. num sistema socialista é diferente: as carreiras são decididas por
decreto do governo. Este pode ordenar às pessoas que não lhe sejam gratas,
àquelas cuja presença não lhe pareça conveniente em determinadas regiões, que
se mudem para outras regiões e outros lugares. E sempre há como justificar e
explicar semelhante procedimento: declara-se que o plano governamental exige
a presença desse eminente cidadão a cinco mil milhas de distância do local
onde (18) ele estava sendo ou poderia ser incômodo aos detentores do poder.
É verdade que a liberdade possível numa economia de mercado não é uma
liberdade perfeita no sentido metafísico. Mas a liberdade perfeita não existe. É
só no âmbito da sociedade que a liberdade tem algum significado. Os
pensadores que desenvolveram, no século XVIII, a idéia da "lei natural" -
sobretudo Jean-Jacques Rousseau - acreditavam que um dia, num passado
remoto, os homens haviam desfrutado de algo chamado liberdade "natural".
Mas nesses tempos remotos os homens não eram livres - estavam à mercê de
todos os que fossem mais fortes que eles mesmos. As famosas palavras de
Rousseau: "O homem nasceu livre e se encontra acorrentado em toda parte",
talvez soem bem, mas na verdade o homem não nasceu livre. Nasceu como
uma frágil criança de peito. Sem a proteção dos pais, sem a proteção
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proporcionada a esses pais pela sociedade, não teria podido sobreviver.
Liberdade na sociedade significa que um homem depende tanto dos demais
como estes dependem dele. A sociedade, quando regida pela economia de
mercado, pelas condições da economia livre, apresenta uma situação em que
todos prestam serviços aos seus concidadãos e são, em contrapartida, por eles
servidos. Acredita-se, que existem na economia de mercado chefões que não
dependem da boa vontade e do apoio dos demais cidadãos. Os capitães de
indústria, os homens de negócios, os empresários seriam os verdadeiros
chefões do sistema econômico. Mas isso é uma Ilusão. Quem manda no sistema
econômico são os consumidores. Se estes deixam de prestigiar um ramo de
atividades, os empresários deste ramo são compelidos ou a abandonar sua
eminente posição no sistema econômico, ou a ajustar suas ações aos desejos e
às ordens dos consumidores.
Uma das mais notórias divulgadoras do comunismo foi Beatrice Potter,
nome de solteira de Lady Passfield (também muito conhecida pelo nome do
marido, Sidney Webb). Essa senhora, filha de um rico (19) empresário,
trabalhou quando jovem como secretária do pai. Em suas memórias, ela
escreve: 'Nos negócios de meu pai, todos tinham de obedecer às ordens dadas
por ele, o chefe. Só a ele competia dar ordens, e a ele ninguém dava ordem
alguma." Esta é uma visão muito acanhada. Seu pai recebia ordens: dos
consumidores, dos compradores. Lamentavelmente, ela não foi capaz de
perceber essas ordens; não foi capaz de perceber o que ocorre numa economia
de mercado, exclusivamente voltada que estava para as ordens expedidas
dentro dos escritórios ou da fábrica do pai.
Diante de todos os problemas econômicos, devemos ter em mente as
palavras que o grande economista francês Frédéric Bastiat usou como titulo de
um de seus brilhantes ensaios: "Ce qu'on volt et ce qu'on ne voít pas" ("O que
se vê e o que não se vê"). Para compreender como funciona um sistema
econômico, temos de levar em conta não só o que pode ser visto, mas também
o que não pode ser diretamente percebido. Por exemplo, uma ordem dada por
um chefe a um contínuo pode ser ouvida por aqueles que estejam na mesma
22
sala. O que não se pode ouvir são as ordens dadas ao chefe por seus clientes.
O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância, são os
consumidores. Não é o Estado, é o povo que é soberano. Prova disto é o fato de
que lhe assiste o direito de ser tolo. Este é o privilégio do soberano. Assiste-lhe
o direito de cometer erros: ninguém o pode impedir de cometê-los, embora,
obviamente, deva pagar por eles. Quando afirmamos que o consumidor é
supremo ou soberano, não estamos afirmando que está livre de erros, que
sempre sabe o que melhor lhe conviria. Muitas vezes os consumidores
compram ou consomem artigos que não deviam comprar ou consumir.
Mas a idéia de que uma forma capitalista de governo pode impedir, através
de um controle sobre o que as pessoas consomem, que elas se prejudiquem, é
falsa. A visão do governo como uma autoridade paternal, um guardião de
todos, é própria dos adeptos do socialismo. Nos Estados Unidos, o governo
empreendeu (20) certa feita, há alguns anos, uma experiência que foi
qualificada de "nobre". Essa "nobre experiência" consistiu numa lei que
declarava ilegal o consumo de bebidas tóxicas. Não há dúvida de que muita
gente se prejudica ao beber conhaque e uísque em excesso. Algumas
autoridades nos Estados Unidos são contrárias até mesmo ao fumo. Certamente
há muitas pessoas que fumam demais, não obstante o fato de que não fumar
seria melhor para elas. Isso suscita um problema que transcende em muito a
discussão econômica: põe a nu o verdadeiro significado da liberdade.
Se admitirmos que é bom impedir que as pessoas se prejudiquem bebendo
ou fumando em excesso, haverá quem pergunte: "Será que o corpo é tudo? não
seria a mente do homem muito mais importante? Não seria a mente do homem
o verdadeiro dom, o verdadeiro predicado humano?" Se dermos ao governo o
direito de determinar o que o corpo humano deve consumir, de determinar se
alguém deve ou não fumar, deve ou não beber, nada poderemos replicar a
quem afirme: "Mais importante ainda que o corpo é a mente, é a alma, e o
homem se prejudica muito mais ao ler maus livros, ouvir música ruim e assistir
a maus filmes. É pois dever do governo impedir que se cometam esses erros."
E, como todos sabem, por centenas de anos os governos e as autoridades
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acreditaram que esse era de fato o seu dever. Nem isso aconteceu apenas em
épocas remotas. Não faz muito tempo, houve na Alemanha um governo que
considerava seu dever discriminar as boas e as más pinturas - boas e más, é
claro, do ponto de vista de um homem que, na juventude, fora reprovado no
exame de admissão à Academia de Arte, em Viena: era o bom e o mau segundo
a ótica de um pintor de cartão-postal. E tornou-se ilegal expressar concepções
sobre arte e pintura que divergissem daquelas do Führer supremo.
A partir do momento em que começamos a admitir que é dever do governo
controlar o consumo de álcool do cidadão, que podemos responder a quem (21)
afirme ser o controle dos livros e das idéias muito mais importante?
Liberdade significa realmente liberdade para errar. Isso precisa ser bem
compreendido. Podemos ser extremamente críticos com relação ao modo como
nossos concidadãos gastam seu dinheiro e vivem sua vida. Podemos considerar
o que fazem absolutamente insensato e mau. Numa sociedade livre, todos têm,
no entanto, as mais diversas maneiras de manifestar suas opiniões sobre como
seus concidadãos deveriam mudar seu modo de vida: eles podem escrever
livros; escrever artigos; fazer conferências. Podem até fazer pregações nas
esquinas, se quiserem - e faz-se isso, em muitos países. Mas ninguém deve
tentar policiar os outros no intuito de impedi-los de fazer determinadas coisas
simplesmente porque não se quer que as pessoas tenham a liberdade de fazêlas.
É essa a diferença entre escravidão e liberdade. O escravo é obrigado a fazer
o que seu superior lhe ordena que faça, enquanto o cidadão livre - e é isso que
significa liberdade - tem a possibilidade de escolher seu próprio modo de vida.
Sem dúvida esse sistema capitalista pode ser - e é de fato - mal usado por
alguns. É certamente possível fazer coisas que não deveriam ser feitas. Mas se
tais coisas contam com a aprovação da maioria do povo, uma voz discordante
terá sempre algum meio de tentar mudar as idéias de seus concidadãos. Pode
tentar persuadi-los, convencê-los, mas não pode tentar constrangê-los pela
força, pela força policial do governo.
Na economia de mercado, todos prestam serviços aos seus concidadãos ao
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prestarem serviços a si mesmos. Era isso o que tinham em mente os pensadores
liberais do século XVIII, quando falavam da harmonia dos interesses -
corretamente compreendidos - de todos os grupos e indivíduos que constituem
a população. E foi a essa doutrina da harmonia de interesses que os socialistas
se opuseram. Falaram de um "conflito inconciliável de interesses" entre vários
grupos. (22)
Que significa isso? Quando Karl Marx - no primeiro capitulo do Manifesto
Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou seu movimento socialista -
sustentou a existência de um conflito inconciliável entre as classes, só pôde
evocar, como ilustração à sua tese, exemplos tomados das condições da
sociedade pré-capitalista. Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia
em grupos hereditários de status, na Índia denominados "castas". Numa
sociedade de status, um homem não nascia, por exemplo, cidadão francês;
nascia na condição de membro da aristocracia francesa, ou da burguesia
francesa, ou do campesinato francês. Durante a maior parte da Idade Média, era
simplesmente um servo. E a servidão, na França, ainda não havia sido
inteiramente extinta mesmo depois da Revolução Americana. Em outras
regiões da Europa, a sua extinção ocorreu ainda mais tarde.
Mas a pior forma de servidão - forma que continuou existindo mesmo depois
da abolição da escravatura - era a que tinha lugar nas colônias inglesas. O
indivíduo herdava seu status dos pais e o conservava por toda a vida.
Transferia-o aos filhos. Cada grupo tinha privilégios e desvantagens. Os de
status mais elevado tinham apenas privilégios, os de status inferior, só
desvantagens. E não restava ao homem nenhum outro meio de escapar às
desvantagens legais impostas por seu status senão a luta política contra as
outras classes. Nessas condições, pode-se dizer que havia "um conflito
inconciliável de interesses entre senhores de escravos e escravos", porque o
interesse dos escravos era livrar-se da escravidão, da qualidade de escravos. E
sua liberdade significava, para os seus proprietários, uma perda. Assim sendo,
não há dúvida de que tinha de haver forçosamente um conflito inconciliável de
interesses entre os membros das várias classes.
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Não devemos esquecer que nesses períodos - em que as sociedades de status
predominaram na Europa, bem como nas colônias que os europeus fundaram
posteriormente na América - as pessoas (23) não se consideravam ligadas de
nenhuma forma especial às demais classes de sua própria nação; sentiam-se
muito mais solidárias com os membros de suas classes nos outros países. Um
aristocrata francês não tinha os franceses das classes inferiores na conta de seus
concidadãos: a seus olhos, eles não eram mais que a ralé, que não lhes
agradava. Seus iguais eram os aristocratas dos demais países - os da Itália,
Inglaterra e Alemanha, por exemplo.
O efeito mais visível desse estado de coisas era o fato de os aristocratas de
toda a Europa falarem a mesma língua, o francês, idioma não compreendido,
fora da França, pelos demais grupos da população. As classes médias - a
burguesia - tinham sua própria língua, enquanto as classes baixas - o
campesinato - usavam dialetos locais, muitas vezes não compreendidos por
outros grupos da população. O mesmo se passava com relação aos trajes. Quem
viajasse de um país para outro em 1750 constataria que as classes mais
elevadas, os aristocratas, se vestiam em geral de maneira idêntica em toda a
Europa; e que as classes baixas usavam roupas diferentes. Vendo alguém na
rua, era possível perceber de imediato - pelo modo como se vestia - a sua
classe, o seu status.
É difícil avaliar o quanto essa situação era diversa da atual. Se venho dos
Estados Unidos para a Argentina e vejo um homem na rua, não posso dizer
qual é seu status. Concluo apenas que é um cidadão argentino, não pertencente
a nenhum grupo sujeito a restrições legais. Isto é algo que o capitalismo nos
trouxe. Sem dúvida há também diferenças entre as pessoas no capitalismo. Há
diferenças em relação à riqueza; diferenças estas que os marxistas,
equivocadamente, consideram equivalentes àquelas antigas que separavam os
homens na sociedade de status.
Numa sociedade capitalista, as diferenças entre os cidadãos não são como as
que se verificam numa sociedade de status. Na Idade Média - e mesmo bem
depois, em muitos países - uma família podia ser aristocrata e possuidora de
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grande fortuna, podia ser uma família de duques, ao longo de séculos (24) e
séculos, fossem quais fossem suas qualidades, talentos, caráter ou moralidade.
Já nas modernas condições capitalistas, verifica-se o que foi tecnicamente
denominado pelos sociólogos de "mobilidade social". O principio segundo o
qual a mobilidade social opera, nas palavras do sociólogo e economista italiano
Vilfredo Pareto, é o da "circulation des élites" ("circulação das elites"). Isso
significa que haverá sempre no topo da escada social pessoas ricas,
politicamente importantes, mas essas pessoas - essas elites - estão em continua
mudança.
Isto se aplica perfeitamente a uma sociedade capitalista. Não se aplicaria a
uma sociedade pré-capitallsta de status. As famílias consideradas as grandes
famílias aristocráticas da Europa permanecem as mesmas até hoje, ou melhor,
são formadas hoje pelos descendentes de famílias que constituíam o escol na
Europa, há oito, dez ou mais séculos. Os Capetos de Bourbon - que por um
longo período dominaram a Argentina - já eram uma casa real desde o século
X. Reinavam sobre o território hoje chamado Ile-de-France, ampliando seu
reino a cada geração. Mas numa sociedade capitalista há uma continua
mobilidade - pobres que enriquecem e descendentes de gente rica que perdem a
fortuna e se tornam pobres.
Vi hoje, numa livraria de uma rua do centro de Buenos Aires, a biografia de
um homem que viveu na Europa do século XIX, e que foi tão eminente, tão
Importante, tão representativo dos altos negócios europeus naquela época, que
até hoje, aqui neste pais tão distante da Europa, encontram-se à venda
exemplares da história de sua vida. Tive a oportunidade de conhecer o neto
desse homem. Tem o mesmo nome do avô e conserva o direito de usar o título
nobiliário que este - que começou a vida como ferreiro - recebeu oitenta anos
atrás. Hoje esse seu neto é um fotógrafo pobre na cidade de Nova Iorque.
Outras pessoas, pobres à época em que o avô desse fotógrafo se tornou um
dos maiores industriais da Europa, são hoje capitães de indústria. Todos são
livres para mudar seu status, Ê isso que distingue (25) o sistema de status do
sistema capitalista de liberdade econômica, em que as pessoas só se podem
27
culpar a si mesmas se não chegam a alcançar a posição que almejam.
O mais famoso industrial do século XX continua sendo Henry Ford. Ele
começou com umas poucas centenas de dólares emprestados por amigos e, em
muito pouco tempo, implantou um dos mais importantes empreendimentos de
grande vulto do mundo. E podemos encontrar centenas de casos semelhantes
todos os dias.
Diariamente o New York Times publica longas notas sobre pessoas que
faleceram. Lendo essas biografias, podemos deparar, por exemplo, com o nome
de um eminente empresário que tenha iniciado a vida como vendedor de jornais
nas esquinas de Nova Iorque. Ou com outro que tenha iniciado como continuo
e, por ocasião de sua morte, era o presidente da mesma instituição bancária
onde começara no mais baixo degrau da hierarquia. Evidentemente, nem todos
conseguem alcançar tais posições. Nem todos querem alcançá-las. Há pessoas
mais interessadas em outras coisas: para elas, no entanto, há hoje certos
caminhos que não estavam abertos nos tempos da sociedade feudal, na época
da sociedade de status.
O sistema socialista, contudo, proíbe essa liberdade fundamental que é a
escolha da própria carreira. Mas condições socialistas há uma única autoridade
econômica, e esta detém o poder de determinar todas as questões atinentes à
produção.
Um dos traços característicos de nossos dias é o uso de muitos nomes para
designar uma mesma coisa. Um sinônimo de socialismo e comunismo é
"planejamento". Quando falam de "planejamento", as pessoas se referem,
evidentemente, a um planejamento central, o que significa um plano único,
feito pelo governo - um plano que impede todo planejamento feito por outra
pessoa.
Uma senhora inglesa - que é também membro da Câmara Alta - escreveu um
livro intitulado Plan or no Plan, obra muito bem recebida no mundo (26)
inteiro. Que significa o título desse livro? Ao falar de "plano" a autora se refere
unicamente ao tipo de planejamento concebido por Lenin, Stalin e seus
sucessores, o tipo que determina todas as atividades de todo o povo de uma
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nação. Por conseguinte, essa senhora só leva em conta o planejamento central,
que exclui todos os planos pessoais que os indivíduos possam ter. Assim sendo,
seu titulo, Plan or no Plan, revela-se um logro, uma burla: a alternativa não
está em plano central versus nenhum plano. Na verdade, a escolha está entre o
planejamento total feito por uma autoridade governamental central e a
liberdade de cada indivíduo para traçar os próprios planos, fazer o próprio
planejamento. 0 indivíduo planeja sua vida todos os dias, alterando seus planos
diários sempre que queira.
O homem livre planeja diariamente, segundo suas necessidades. Dizia,
ontem, por exemplo: "Planejo trabalhar pelo resto dos meus dias em Córdoba."
Agora, informado de que as condições em Buenos Aires estão melhores, muda
seus planos e diz: "Em vez de trabalhar em Córdoba, quero ir para Buenos
Aires." É isso que significa liberdade. Pode ser que ele esteja enganado, pode
ser que essa ida para Buenos Aires se revele um erro. Talvez as condições lhe
tivessem sido mais propicias em Córdoba, mas ele foi o autor dos próprios
planos.
Submetido ao planejamento governamental, o homem é como um soldado
num exército. Não cabe a um soldado o direito de escolher sua guarnição, a
praça onde servirá. Cabe-lhe cumprir ordens. E o sistema socialista - como o
sabiam e admitiam Karl Marx, Lenin e todos os líderes socialistas - consiste na
transposição do regime militar a todo o sistema de produção. Marx falou de
"exércitos industriais" e Lenin impôs "a organização de tudo - o correio, as
manufaturas e os demais ramos industriais - segundo o modelo do exército".
Portanto, no sistema socialista, tudo depende da sabedoria, dos talentos e dos
dons daqueles que constituem a autoridade suprema. O que o ditador supremo -
ou seu comitê - não sabe, não é levado (27) em conta. Mas o conhecimento
acumulado pela humanidade em sua longa história não é algo que uma só
pessoa possa deter. Acumulamos, ao longo dos séculos, um volume tão
incomensurável de conhecimentos científicos e tecnológicos, que se torna
humanamente impossível a um indivíduo o domínio de todo esse cabedal, por
extremamente bem-dotado que ele seja.
29
Acresce que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o serão. Alguns
são mais dotados em determinado aspecto, menos em outro. E há os que têm o
dom de descobrir novos caminhos, de mudar os rumos do conhecimento. Nas
sociedades capitalistas, o progresso tecnológico e econômico é promovido por
esses homens. Quando alguém tem uma idéia, procura encontrar algumas
outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o valor de seu achado.
Alguns capitalistas que ousam perscrutar o futuro, que se dão conta das
possíveis conseqüências dessa idéia, começarão a pô-la em prática. Outros, a
principio, poderão dizer: "São uns loucos", mas deixarão de dizê-lo quando
constatarem que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou loucura
está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar seus produtos.
No sistema marxista, por outro lado, o corpo governamental supremo deve
primeiro ser convencido do valor de uma idéia antes que ela possa ser levada
adiante. Isso pode ser algo muito difícil, uma vez que o grupo detentor do
comando - ou o ditador supremo em pessoa - tem o poder de decidir. E se essas
pessoas - por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou de
instrução - forem incapazes de compreender o significado da nova idéia, o
novo projeto não será executado.
Podemos evocar exemplos da história militar. Napoleão era
indubitavelmente um gênio em questões militares; não obstante, viu-se certa
feita diante de um grave problema. Sua incapacidade para resolvê-lo culminou
na sua derrota e no subseqüente exílio na solidão de Santa Helena. O problema
de Napoleão podia-se resumir a uma pergunta: "Como conquistar a Inglaterra?"
Para fazê-lo, precisava de uma (28) esquadra capaz de cruzar o canal da
Mancha. Houve, então, pessoas que lhe garantiram conhecer um meio seguro
de levar a cabo aquela travessia; estas pessoas, numa época de embarcações a
vela, traziam a nova idéia de barcos movidos a vapor. Mas Napoleão não
compreendeu sua proposta.
Depois, houve o famoso Generalstab da Alemanha. Antes da Primeira
Guerra Mundial, o estado-maior alemão era universalmente considerado
insuperável em ciência militar. Reputação análoga tinha o estado-maior do
30
general Foch, na França. Mas nem os alemães nem os franceses - que, sob o
comando do general Foch, derrotaram posteriormente os alemães - perceberam
a importância da aviação para fins militares. O estado-maior alemão declarava:
"A aviação é um mero divertimento; voar é bom para os desocupados. Do
ponto de vista militar, só zepelins têm importância. "E os franceses eram da
mesma opinião.
Mais tarde, no intervalo entre as duas Guerras Mundiais, nos Estados
Unidos, um general se convenceu de que a aviação seria de extrema
importância na guerra que se aproximava. Mas todos os peritos do pais
pensavam o contrário. Ele não conseguiu convencê-los. Sempre que tentamos
convencer um grupo de pessoas que não depende diretamente da solução de um
problema, o fracasso é certo. Isso se aplica também aos problemas não
econômicos.
Muitos pintores, poetas, escritores e compositores já se queixaram de que o
público não reconhecia sua obra, o que os obrigava a permanecerem na
pobreza. Não há dúvida de que o público pode ter Julgado mal; mas, quando
promulgam que "o governo deve subsidiar os grandes artistas, pintores e
escritores", esses artistas estão completamente errados. A quem deveria o
governo confiar a tarefa de decidir se determinado estreante é ou não, de fato,
um grande pintor? Teria de se valer da apreciação dos críticos e dos professores
de história da arte, que, sempre voltados para o passado, até hoje deram raras
mostras de talento no que tange à descoberta de novos gênios. Essa (29) é a
grande diferença entre um sistema de "planejamento" e um sistema em que é
dado a cada um planejar e agir por conta própria.
É verdade, obviamente, que grandes pintores e grandes escritores
suportaram, muitas vezes, situações de extrema penúria. Podem ter tido êxito
em sua arte, mas nem sempre em ganhar dinheiro. Van Gogh foi por certo um
grande pintor. Teve de sofrer agruras insuportáveis e acabou por se suicidar,
aos 37 anos de idade. Em toda a sua existência, vendeu apenas uma tela,
comprada por um primo. Afora essa única venda, viveu do dinheiro do irmão,
que, apesar de não ser artista nem pintor, compreendia as necessidades de um
31
pintor. Hoje, não se compra um Van Gogh por menos de cem ou duzentos mil
dólares.
No sistema socialista, o destino de Van Gogh poderia ter sido diverso.
Algum funcionário do governo teria perguntado a alguns pintores famosos (a
quem Van Gogh seguramente nem sequer teria considerado artistas) se aquele
jovem, um tanto louco, ou completamente louco, era de fato um pintor que
valesse a pena subsidiar. E com toda certeza eles teriam respondido: "Não, não
é um pintor; não é um artista; não passa de uma criatura que desperdiça tinta", e
o teriam enviado a trabalhar numa indústria de laticínios, ou para um hospício.
Todo esse entusiasmo pelo socialismo manifestado pelas novas gerações de
pintores, poetas, músicos, jornalistas, atores, baseia-se, portanto, numa ilusão.
Refiro-me a isso porque esses grupos estão entre os mais fanáticos defensores
da concepção socialista.
Quando se trata de escolher entre o socialismo e o capitalismo como sistema
econômico, o problema é um tanto diferente. Os teóricos do socialismo jamais
suspeitaram que a indústria moderna - juntamente com todos os processos do
moderno mundo dos negócios - se basearia no cálculo. Os engenheiros não são,
de maneira alguma, os únicos a planejarem com base em cálculos; também os
empresários são obrigados a fazê-lo. E os cálculos do homem de negócios se
baseiam todos no fato de que, na economia (30) de mercado, os preços em
dinheiro dos bens não só informam o consumidor, como fornecem ao
negociante informações de importância vital sobre os fatores de produção,
porquanto o mercado tem por função primordial determinar não só o custo da
última parte do processo de produção, mas também o dos passos
intermediários. O sistema de mercado é indissociável do fato de que há uma
divisão mentalmente calculada do trabalho entre os vários empresários que
disputam entre si os fatores de produção - as matérias-primas, as máquinas, os
instrumentos - e o fator humano de produção, ou seja, os salários pagos à mãode-
obra. Esse tipo de cálculo que o empresário realiza não pode ser feito se ele
não tem os preços fornecidos pelo mercado.
No instante mesmo em que se abolir o mercado - e é o que os socialistas
32
gostariam de fazer - ficariam inutilizados todos os cômputos e cálculos feitos
pelos engenheiros e tecnólogos. Os tecnólogos podem continuar fornecendo
grande número de projetos que, do ponto de vista das ciências naturais, podem
ser todos igualmente exeqüíveis, mas são os cálculos baseados no mercado -
realizados pelo homem de negócios - que são indispensáveis para se determinar
qual desses projetos é o mais vantajoso do ponto de vista econômico.
O problema de que estou tratando é a questão fundamental do cálculo
econômico capitalista em contraposição ao que se passa no socialismo. O fato é
que o cálculo econômico - e por conseguinte todo planejamento tecnológico -
só é possível quando existem preços em dinheiro, não só para bens de
consumo, como para os fatores de produção. Isso significa que é preciso haver
um mercado para todas as matérias-primas, todos os artigos semi-acabados,
todos os instrumentos e máquinas, e todos os tipos de trabalho e de serviço
humanos.
Quando se descobriu esse fato, os socialistas não souberam reagir
adequadamente. Por 150 anos tinham afirmado: "Todos os males do mundo
advêm da existência de mercados e de preços de mercado. (31) Queremos
abolir o mercado e, com ele, é claro, a economia de mercado, substituindo-a
por um sistema sem preços e sem mercados." Queriam abolir o que Marx
chamou de "caráter de mercadoria" das mercadorias e do trabalho.
Confrontados com esse novo problema, os teóricos do socialismo, sem
resposta, acabaram por concluir: "não aboliremos o mercado por completo;
faremos de conta que existe um mercado, como as crianças, quando brincam de
escolinha." A questão é que, todos sabem, as crianças quando brincam de
escolinha não aprendem coisa alguma. Ê só uma brincadeira, uma simulação, e
se pode "simular" muitas coisas.
Este é um problema muito difícil e complexo, e para analisá-lo em toda a sua
amplitude seria necessário um pouco mais de tempo do que o que tenho aqui.
Explanei-o em detalhes em meus escritos. Em seis palestras, não posso
empreender uma análise de todos os seus aspectos. Assim sendo, quero sugerirlhes,
caso estejam interessados no problema básico de impossibilidade do
33
cálculo e do planejamento no socialismo, a leitura de meu livro Human Action,
encontrável em espanhol em excelente tradução.
Mas leiam também outros livros, como o do economista norueguês Trygue
Hoff, que escreveu sobre o cálculo econômico. E, se não quiserem ser
unilaterais, recomendo a leitura do livro socialista mais respeitado sobre o
assunto, da autoria do eminente economista polonês Oscar Lange, que foi por
algum tempo professor numa universidade americana, tornou-se depois
embaixador da Polônia, voltando, posteriormente, para o seu país.
Provavelmente me perguntarão: "E a Rússia? Como enfrentam os russos
esse problema?" Nesse caso, a questão muda de figura. Os russos gerem seu
sistema socialista no âmbito de um mundo em que existem preços para todos os
fatores de produção, para todas as matérias-primas, para tudo. Por conseguinte,
podem utilizar, em seu planejamento, os preços do mercado mundial. E, visto
que há certas diferenças (32) entre as condições reinantes na Rússia e as
reinantes nos Estados Unidos, freqüentemente o resultado é que, para os russos,
parece justificável e aconselhável - de seu ponto de vista econômico - algo que,
para os americanos, absolutamente não se justificaria economicamente.
A "experiência soviética" - ou "experimento", como foi chamada - não prova
coisa alguma. Nada revela sobre o problema fundamental do socialismo, o
problema do cálculo. Mas teríamos razões para caracterizá-la como
"experiência"? Não creio que, no campo da ação humana e da economia,
possamos ter algo que se assemelhe a um experimento cientifico. Não se pode
fazer experimentos de laboratório no campo da ação humana, porque um
experimento científico requer a réplica de um mesmo procedimento sob
diversas condições, ou a manutenção das mesmas condições acompanhada da
variação de talvez um único fator. Por exemplo, se injetarmos num animal
canceroso um medicamento experimental, o resultado pode ser o
desaparecimento do câncer. Poderemos testar isso com vários animais da
mesma raça, portadores da mesma doença. Se tratarmos parte deles com o novo
método e não tratarmos outros, poderemos comparar os resultados. Ora, nada
disso é viável no campo da ação humana. Não há experimentos de laboratório
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nesse plano.
A chamada "experiência" soviética mostra tão somente que o padrão de vida
na Rússia Soviética é incomparavelmente inferior ao padrão alcançado pelo
país mundialmente reputado o paradigma do capitalismo: os Estados Unidos.
Se dissermos isto a um socialista, ele certamente contestará: "As coisas na
Rússia estão correndo maravilhosamente bem." E nós responderemos: "Podem
estar maravilhosas, mas o padrão de vida é, em média, muito baixo." Então ele
retrucará: "Sim, mas lembre o quanto os russos sofreram com os czares, e a
terrível guerra que tivemos de enfrentar."
Não quero discutir se esta é ou não uma explicação correta, mas quando se
nega que as condições (33) tenham sido as mesmas, nega-se ao mesmo tempo
que tenha havido uma experiência. O que se deveria afirmar - e seria muito
mais correto - é: "O socialismo na Rússia não ocasionou, em média, uma
melhoria das condições do homem comparável à melhoria de condições
verificada, no mesmo período, nos Estados Unidos."
Nos Estados Unidos, quase toda semana tem-se noticia de um novo invento,
de um aperfeiçoamento. Muitos aperfeiçoamentos foram gerados no mundo
empresarial, porque milhares e milhares de industriais estão empenhados, noite
e dia, em descobrir algum novo produto que satisfaça o consumidor, ou seja de
produção menos dispendiosa, ou seja melhor e menos oneroso que os produtos
já existentes. Não é o altruísmo que os move; é seu desejo de ganhar dinheiro.
E o efeito foi que o padrão de vida se elevou, nos Estados Unidos, a níveis
quase miraculosos quando confrontados às condições reinantes há cinqüenta ou
cem anos atrás. Mas na Rússia Soviética, onde esse sistema não vigora, não se
verifica um desenvolvimento comparável. Assim, os que nos recomendam a
adoção do sistema soviético estão inteiramente equivocados.
Há mais uma coisa a ser mencionada. O consumidor americano, o indivíduo,
é tanto um comprador como um patrão. Ao sair de uma loja nos Estados
Unidos, é comum vermos um cartaz com os seguintes dizeres: "Gratos pela
preferência. Volte sempre." Mas ao entrarmos numa loja de um país totalitário -
seja a Rússia de hoje, seja a Alemanha de Hitler -, o gerente nos dirá:
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"Agradeça ao grande líder, que lhe está proporcionando isso."
Nos países socialistas, ao invés de ser o vendedor, é o comprador que deve
ficar agradecido. Não é o cidadão quem manda; quem manda é o Comitê
Central, o Gabinete Central. Estes comitês, os líderes, os ditadores, são
supremos; ao povo cabe simplesmente obedecer-lhes. (34)